terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Império - 2008

2008 - O desafio era a palavra Império, só Império

E o dicionário diz:
"Império - Comando, autoridade; domínio, predomínio; influência dominadora, estado de vastas dimensões, nação de grande porte, estrutura económica que se assemelha à de um império."
  
O meu olhar é de hoje e de ontem, vivido e sentido; o meu olhar é ocidental, racional qb., e justo, tanto quanto possível.

Assisti à queda do nosso Império Colonial. Era previsível que ele caísse, e só quem não quis escutar as vozes e os actos que anunciavam o seu fim próximo, é que pôde acreditar que seríamos capazes de manter o que nos restava do mapa cor-de-rosa.
Matámos e morremos, pilhámos, incendiámos e perdemos, deixando uma geração marcada para sempre pelo horror, estupidez e brutalidade da guerra. Ficámos mais pequenos, deixámos de olhar para o mar e voltámos-nos para a Europa e pensámos que finalmente íamos ser europeus. Perdemos as nossas raízes marítimas, a coragem que o mar despertava em nós, a capacidade de adaptação a novos climas, novas terras, novas gentes e achámos que já não éramos periféricos, pobres, invejosos e maldizentes. Acreditámos ser outros que não somos, e arruinámos o sonho e a ousadia.
Vivemos ainda da memória de um Império que já não temos, da glória daqueles que sempre souberam que o mar era o nosso destino, e estamos como zumbis à procura de um caminho.

Vivi o fim da segunda guerra e a formação de novos impérios; de um lado o império americano, do outro, o império soviético.
Soube de Estaline e da sua crueldade diabólica, dos milhões de mortos, do Gulag, do maldito sonho da igualdade.
Emocionei-me com De Gaulle, com Churchill e a sua promessa de “sangue, suor e lágrimas”…
O dia D e a entrada na Normandia, finalmente a guerra poderia acabar.
Chorei quando os aliados chegaram a Dachau e a Auschwitz e libertaram os prisioneiros que ainda restavam.
Soube do suicídio de Hitler e de Eva Braun. Vi a Europa destruída, esventrada, quase aniquilada.
Vi a Europa ser reconstruída com os dólares americanos, as democracias a serem instaladas, as monarquias a caírem de podres.
Vi cair Fulgêncio Baptista e acompanhei com entusiasmo a entrada de Fidel de Castro, de Che Guevara e os seus homens em Havana. Um vento de liberdade parecia soprar.
Vi a esperança renascer em Praga e o povo acreditar que a liberdade era possível. Mas vi também os tanques entrarem na cidade no dia 20 de Agosto de 1968. Caía Alexandre Dubcek e a Primavera de Praga sucumbia perante a força bruta.
Vi cair Salvador Allende e Pinochet tomar o poder. Vi os generais argentinos, Videla, Massera, Gualtieri e as purgas sucessivas, as mães chorando os filhos desaparecidos, torturados, mortos e enterrados em valas comuns. E os generais brasileiros Geisel, Figueiredo, e a liberdade e os direitos suprimidos.
Vejo agora o Iraque em sangue, e a América pregando uma nova religião a que chama democracia, escondendo o objectivo supremo, conservar, monopolizar as reservas de petróleo, sem as quais o mercado não pode crescer, sem as quais o mundo que reconhecemos, e cujos valores, acreditando que ainda existam, são também os nossos.
Vejo a China a poluir-se, a poluir-nos, a invadir-nos e a inverter a ordem estabelecida…outro império no horizonte!

Sou europeia, periférica, mas europeia; acreditei que a liberdade era possível, que as conquistas sociais pudessem permanecer, que se quisesse  construir um mundo melhor. E se tivesse que escolher, “não hesitaria um segundo”, era este mundo ocidental, imperfeito, injusto, hipócrita, tantas vezes cobarde, cansado e envelhecido, a quem eu daria ainda, o meu voto de confiança.




terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Lista de Natal menos convencional


Nesse Natal, Rita tinha resolvido virar de pernas-para o ar todo o esquema de presentes. Estava fora de questão a lista muito certa e justa, valores iguais para ninguém se queixar. Que se queixassem não queria nem saber. A prioridade é – de quem mais gosta; vai haver choros, raivas contidas, sorrisos forçados, paciência, viva o coração, é ele que faz a lista.
Para os filhos queridos:
O Rui vai receber a prancha de surf com que sonha todos os dias. O mar é a sua liberdade, a sua emancipação e realização.
Para a Mariana, e ela merece, a sonhada viagem à Austrália, como prémio da seriedade e de todo o amor que nos une.
O Ricardo, o meu irmão, que está cada vez mais chato, o pessimista de serviço, talvez uns chupas chupas para se lembrar do tempo em que era criança e divertido
Depois há a Lucília a minha cunhada. Coitada não é má pessoa, aturar o Ricardo não é fácil, mas é completamente desinteressante e queixa-se sempre do frio…uma capa a fingir caxemira na loja do chinês está óptimo.
Os meus sobrinhos são simpáticos, gosto deles, mas o meu preferido é o Pedro que adora música e toca na banda da universidade. Talvez uma bateria, acho que vai gostar.
O Carlitos está na idade do armário – quer ser chamado de Carlos - mas ele tem lá cara de Carlos, cheio de borbulhas e com os jeans a caírem pelo rabo. Um azulejo com o nome de Carlitos para que cresça e apareça.
Os velhotes, o problema está resolvido: a Avó Matilde, bisbilhoteira e intriguista, leva uma fotografia da família para juntar aqueles montes de fotografias que tem na sala e que só ela sabe quem são.
O Avô João que acha que continua a ser um D.Juan, uma caixa de Viagra fingido só para ver a cara dele.
Mas ainda faltam pessoas.  Deixa cá ver:
Avô Eugénio – outro a quem vou dar chupas chupas para voltar a ser criança e talvez voltar a sorrir.
Esqueci-me da minha sobrinha Madalena, uma enjoada e agora desde que está grávida  é o próprio enjoo. Um boneco de peluche, um ursito, um panda, também há na loja do chinês.
O irmão da Lucília, o Quim Zé, solteirão impenitente, um filme meio "porno" talvez não seja má ideia “Garganta profunda” ou “Emmanuelle”. Vai dizer que sou uma depravada, estou-me nas tintas.
Falta alguém? Ah, o miúdo Rodrigo filho da Conceição, irmã mais nova da minha cunhada. O miúdo é giro, divertido, vou ver qual o último play station, gosto do garoto.
À Conceição dou-lhe aquela água de Colónia quase sem cheiro, desde que o marido a deixou perdeu a graça toda, já não tinha muita, mas agora…
E para mim uma viagem a Nova Iorque e voltar a ouvir o Maxim Vengerov a tocar o concerto nº1 de Tchaikovsky.
Acho que acabei a lista!

P.S. Falta o Pipo, o meu querido Pipo – um osso verdadeiro fará a sua felicidade.


HB

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sonata de Chopin



Francisco estranhou quando o telefone tocou aquela hora. Não era habitual em Vitória. A voz estava diferente do outro lado da linha. Fria e incisiva, cortante. A voz de quem dá uma ordem.
Os dias ainda estavam longos e a estrada livre. Chegaria a tempo. Vitória detestava esperar.
Francisco sentou-se na sua poltrona preferida, perto da janela e junto à lareira que Vitória não acendera. Aguentava mal o silêncio, pesava-lhe e não conseguia disfarçar o nervosismo que sentia.
Não se ouvia a música preferida de ambos. Maria João Pires não tocaria Chopin nessa tarde de Outono.
Vitória continuava silenciosa. Francisco sabia que o jogo da sedução e paixão não teria mais lugar. Sentiam que aquele encontro seria decisivo; Vitória recusava continuar a viver na mentira e na hipocrisia, pedia uma definição.
Os dois enfrentavam-se; o tom de voz subia, e a verdade, aquela verdade que se diz nos momentos de desespero vinha ao de cima.
Vitória olhou para ele com raiva. Toda a frustração, desespero, angustia, que sentira nesse ultimo ano, estava expressa naquele olhar.
Francisco dirigiu-se para a porta de entrada. Abriu-a com violência e saiu sem olhar para trás.

HB

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Despertador indiscreto


Já toquei. Cumpri o meu dever. Sei que sou estridente e intrometido mas se não for assim ela adormece novamente.
Gosto de a observar quando se espreguiça na cama, os olhos quase fechados. Primeiro estica as pernas, depois os braços. No Verão ela está linda, quase nua e eu, mudo, a olhar para aquele corpo jovem e elástico que eu conheço há alguns anos.
Sou um privilegiado e não me queixo da vida. Depois ela põe a música a tocar. Conheço-lhe os gostos: se tem alguma reunião importante lá vem a música clássica, Beethoven ou Chopin, às vezes Mozart. Levanta-se séria, decidida e lá vai para debaixo do duche onde fica horas. A música continua a tocar até ela estar pronta.
A mim também me desliga não vá eu começar a tocar fora de propósito. Aconteceu uma vez, mas essa não posso contar porque é muito intima e eu prometi a mim próprio que não dizia a ninguém. O que eu mais gosto é quando ela se ri e solta uma daquelas gargalhadas irresistíveis. Acontece muitas vezes quando telefona o Edward, que eu não conheço mas de quem tenho ciúmes. A esse se pudesse despertava-o às cinco da manhã só para me vingar.
Tenho uma vida calma, rotineira, mas em paz comigo próprio. Cumpro o meu dever e gosto muito, mesmo muito da minha dona.


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Mar, não sabia que corrias nas minhas veias


Nunca até então vivera longe do mar. Sempre de uma forma ou de outra o mar estava próximo.
Lisboa abre-se despudorada ao rio e ao oceano. Do mar chegavam os que a aventura, a profissão, a família, levara até terras longínquas. Iam e voltavam… algumas vezes ficavam e não voltavam mais.
O cais era sempre o lugar da tristeza e da alegria, das lágrimas e dos risos, abraços, dos lenços brancos até não se saber mais a quem se dizia adeus.
O mar era também a liberdade das férias, o mergulhar nas ondas, enfrentá-lo um desafio constante.
E agora o mar não estava, e sua ausência era sentida com profunda dor.



Liberdade

Era um sonho, uma obsessão conquistar a liberdade. Decidir por ela em plena consciência e com a maturidade possível, ir até onde a imaginação a levasse. Saber que o espaço da vida lhe pertencia quase na totalidade. Caminhar a céu aberto, sem se importar de cair, de se magoar, levantar-se, sacudir o pó e continuar mesmo com dor.
As barreiras tinham ficado para trás, atravessá-las deixara cicatrizes indeléveis, de tempos a tempos passava a mão pela alma para senti-las e não mais as esquecer. Elas eram a marca do caminho já percorrido e da chegada ao “point of no return”.
A sensação de vertigem e o medo de perder o equilíbrio assaltavam-na, mas era nesses momentos que agarrava a liberdade com as mãos tornando-a prisioneira do seu sonho.


HB

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Montanha russa e uma ex ciumenta...

O que era aquele sentimento? De repente era nele que pensava, era com ele que queria estar… um novo amor?
Não tinha ainda a certeza, mas gostava do que sentia. Não esperava um novo amor, não sabia se queria, mas não punha barreiras, não sentia medo… um pouco como quando ainda criança andava na montanha russa; um frio na barriga, um arrepio e depois a sensação inebriante da queda e da subida outra vez.
Um novo amor comparável a uma montanha russa?  Riu-se às gargalhadas, adorou a comparação. Afinal o que era a sensação de um novo amor, senão uma espécie de bebedeira, de uma aventura mágica, sem fim previsível. Para quê ter medo, o medo é impeditivo, arrepender-se talvez, mas a vida é feita de muitos arrependimentos.
O dia fora passado na praia, quase deserta naquela altura do ano, o mar estava calmo. Andaram de barco, cortando as pequenas ondas, deixando que o sal e o vento os deixassem estonteados e cansados. Deram as mãos, ambos sabiam que abriam um novo capítulo.
Depois os dias passaram e houve aquele almoço, incómodo, inesperado, indigesto. Ela, Ele e a EX. A ex ainda possessiva, com passado à superfície:  “Lembras-te, “Sim tu gostavas”, Quando estivemos em Itália”…

Chegou a casa tonta, os sentimentos todos numa confusão, e o telefone tocou, ele claro, “Sei como te sentes, mas o passado vai estar sempre connosco, o teu e o meu. Agora vivamos o presente para que possamos amanhã saber que temos um passado que é nosso, só nosso.”

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A linha do horizonte


Era um sentimento estranho e diferente que a invadia. Uma imensa nostalgia, e a certeza clara e dura, que havia coisas perdidas para sempre. Mas havia outras que queria ainda fazer, que deviam ser feitas, não se perdoaria deixá-las ao acaso.
Passa os dedos pelos cabelos, está só mas a solidão não lhe pesa, dentro de si as recordações dançam como se de um bailado se tratasse.
Olha pela janela, o sol põe-se no horizonte.


Partir para longe dissera ele. “Quero ir para onde ninguém me conheça, esquecer que te amei e recomeçar de novo.”
Ela calou-se, não respondeu; achava tudo aquilo um disparate, como se fosse possível não arrastar consigo o passado, a memória, os risos e as lágrimas.
“Não dizes nada…”
“Vai, vai para longe, não te libertarás nunca de mim. É a única coisa que eu sei.
Ele olhou-a espantado e saiu deixando a porta aberta.


O tempo um dia achamos que o temos todo. Sem darmos por isso chegamos a meio e depois inexoravelmente o tempo ficou tão curto que nos surpreende.

O tempo… estranha noção.

Garrafas com areias coloridas



Olhava para o rapaz que não teria mais que doze anos franzinos e tristes. No entanto a paciência que demonstrava ao deitar cuidadosamente areias coloridas para dentro da garrafa, demonstrava uma imensa dose de persistência e mestria.
Levantou os olhos e perguntou:
“A senhora quer aprender?”
“Não, não, só te quero ver trabalhar e admiro a tua paciência.”
“Gosto, disse ele, “aprendi com o meu pai, que já tinha aprendido com o meu avô, mas o melhor de todos é o meu pai. Está horas e horas a escolher as cores e os bonecos que vai ser capaz de construir. Amanhã eu trago para a senhora ver uma garrafa que foi premiada. Ele tem uma medalha que está pendurada em cima da cama. Diz que lhe dá sorte e paciência.”
“E tu herdaste o talento do teu pai, pelos vistos!”
“Tomara…mas ainda vou precisar treinar muito.”
“Tens a vida à tua frente, e paciência não te falta.”
Sentei-me e olhei o mar e a areia da praia, branca e fina. Seria completamente incapaz de encher com areias coloridas fosse o que fosse. Iria misturar tudo, estabelecer o caos, sem forma, sem sentido. As areias não seriam nunca matéria que eu pudesse moldar. As palavras, as letras sim. Esculpir palavras, frases, alisar arestas, libertá-las de ornamentos supérfluos, tirar vírgulas, pôr pontos.

Sim era essa a minha garrafa de areias coloridas, presas por mim numa página que deixou de estar vazia e que pintei ao sabor da minha imaginação.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Uma aldeia isolada


Começava a ser difícil subir a encosta até à pequena casa onde vivia Fernão. Desde a morte da mulher que a tristeza o invadira e era a custo que se deslocava até à aldeia para adquirir o indispensável para sobreviver.
Às vezes o Fiel acompanhava-o, mas começava a estar velho e frágil, preferia ficar deitado ao pé da lareira sobretudo agora que os dias estavam mais frios e as noites geladas.
Fernão puxou o capote para se proteger do vento agreste. Faltavam ainda uns cem metros, os mais difíceis, o caminho era ingreme e irregular.
Vivera sempre naquele lugar perdido, mas gostava da paisagem dura e impiedosa, do barulho das águias e da água que caía sobre as rochas. Francisca dera-lhe dois filhos que partiram rumo às Américas. Nunca mais tinham voltado. Mas Francisca era a luz da sua vida e tudo era suportável quando reencontrava o seu sorriso e quando na intimidade do pequeno quarto soltava os magníficos cabelos loiros e se abraçavam ternamente.
Por Francisca mantinha-se vivo, sabia que ela não lhe perdoaria qualquer acto tresloucado. Quando a voltasse a encontrar queria ter a certeza de estar em paz.
Abriu a porta da casa. Lá estava o Fiel enroscado que apenas abanou o rabo. Pousou o saco sobre a mesa de madeira, tirou as botas e deixou-se cair na cadeira. A madeira ainda ardia e do forno do pão chegou-lhe o cheiro quente e pacificador.
“Francisca, Francisca deixa-me partir…não sou nada sem ti e ninguém precisa de mim.”
Ouviu bater à porta; não, não era possível ninguém o visitava. Era um bater leve mas insistente. Abriu, um garoto de caracóis negros pediu-lhe para entrar.
“Tenho frio, disse-lhe, e senti o cheiro do pão”.



Palavras perdidas



As palavras tinham-se perdido, quase já não se lembrava dos sons. A vida levara-lhe tudo: a casa, a mulher, os filhos. Perdido na sua imensa solidão, sem ter coragem para acabar com o sofrimento, sobrevivia com o que era distribuído no centro de abrigo.
Não se atrevia a pensar no passado, seria intolerável, vagueava como um pedaço de madeira carcomida ao sabor das ondas. Alguém lhe levara também o cão, a única companhia que lhe restava. Demorava a chegar a hora em que tudo acabaria. Resistia, sem querer, sem ser capaz de dizer não. Durante toda a vida nunca soubera dizer não e talvez por isso ali estava sentado no vão daquela escada à espera.
Não queria viver, não sabia se queria morrer.

A neve caía cobrindo tudo à sua volta, a ele também, agora vestido de branco, macio e frio para sempre.

domingo, 27 de outubro de 2013

Serial Killer


A cadela era doida varrida, linda também. Uma setter ruiva, nervosa, indisciplinada e um verdadeiro terror para a vizinhança. Não porque fosse perigosa, mas porque não havia bicho de penas que lhe resistisse. Blondie chamava-se a setter.
No Verão quando a família se mudava de armas e bagagens para a casa da praia, a Blondie talvez excitada pelo ar do mar e o vento fresco da serra, entrava em perfeito delírio. Teria inspirado Hitchcock pelo suspense que criava cada vez que saltava a cercania e cavalgava, sim porque não corria, cavalgava, e cheirando penas ao longe, lá ia ela à procura da próxima vítima. Pintos, galinhas, patos, todos estremeciam à sua passagem, um deles sabia que tinha chegado a sua hora. E lá voltava a Blondie galopante e triunfante com penas a voar da boca e um piar lancinante da vítima inocente.
A Blondie fez voar um bando de perus que aterrados e espavoridos se refugiaram nos pinheiros mais próximos, horrendas aves pesadas, deslocadas do seu habitat natural e que se recusavam a descer dos ramos onde a custo se tinham abrigado.
As queixas eram muitas e a mãe, dona da setter caçadora, lá ia conseguindo driblar os pobres dos proprietários das aves assassinadas. A Blondie era uma serial killer.
O Sr. Conde, vizinho próximo, dizia-se que comprara o título no Vaticano por bom dinheiro, cioso da sua nobreza e da casa apalaçada recentemente adquirida, tivera a ideia grandiosa de colocar no lago do jardim, dois magníficos cisnes brancos que importara de Inglaterra. Claro que a Blondie os farejou, os cercou, os amordaçou e os pobres sucumbiram. E eis que quando mãe e filha todas aperaltadas de renda e tafetás, capelines de palha na cabeça, prontas para o casamento do sobrinho e primo querido, vêm surgir um conde espumante e furibundo, gesticulando e ameaçando a mãe de várias maneiras.

A cena era insólita, ao mesmo tempo ridícula, disparatada, e as gargalhadas explodiram irresistíveis, as capelines estremeceram, e o conde olhou com desprezo para as duas. “Pobres plebeias”, disse entre os dentes.

O bule de prata


Escolher um objecto, preferido de preferência!
Um objecto – não alguns. Só um é difícil,  um objecto do qual eu tivesse gostado muito, levou quase sempre à compra de outro objecto parecido, da mesma família, da mesma cor.
São pequenas colecções: os bules, a cerâmica persa, azul e frágil, os vidros azuis.  Destaco um?
Não posso, não amo só um, é o todo, a diversidade, o tempo, a época, a circunstância.
Pergunto a mim própria, se fosse obrigada a escolher qual seria o meu preferido? Olho-os com curiosidade e alguma distância.
Imagino-me a partir, e a ter que me despedir daqueles objectos que correspondem a etapas da minha vida, a gostos e a contra gostos. Destaco o bule de prata, antigamente usava-o, depois achei que ele estava cansado e pu-lo a descansar junto com os outros. Não sei se gostou, sobretudo porque o substitui pelo de barro vidrado, “british” sim, mas não aristocrático.
“És tu o escolhido, ficavas lindo quando te limpava com um produto especial e depois te secava e polia com uma flanela macia. Vens comigo e serás o fio condutor de todas as recordações e lembranças. Escolho-te porque és único, elegante e distinto e me serás fiel até ao fim. Não te vais partir, a tua tampa não se quebrará em mil pedaços.
Escolho-te e isso liberta-me, digo adeus a todos os outros, sem lágrimas, mas triste. É sempre triste dizer adeus, sobretudo quando nos despedimos de nós próprias.



sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Arco-íris



Dizia, repetia, barafustava, detestava grafitis, achava um vandalismo, uma porcaria.
Nessa manhã luminosa de Inverno, caminhava apressada pela rua larga, o muro era branco e alto e só depois apareciam as árvores que suavizavam a paisagem.
O muro era branco, hoje já não era, alguém pintara um arco-íris num céu azul, a meio o arco-íris desfazia-se e as cores escorriam pelo muro que fora branco. Em baixo uma legenda:
“A esperança desfez-se em lágrimas de cor!”

Parou, olhou, voltou a olhar...afinal talvez não detestasse tanto assim os "grafitis".

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Joaquina Vanessa


Joaquina Vanessa (Jaquina como é conhecida) estava no auge da felicidade.  O Vladimir, Vlad para os amigos, acabara de lhe enviar uma mensagem. Joaquina Vanessa lia e relia para acreditar que era verdade. Logo o Vlad aquele mulatão alto e de andar gingão que parecia não a ver: “Linda, deixas-me nervoso, a tua boca é um rebuçado, os teus olhos caramelos e tu és boa como o milho.”
O coração pulava dentro dela, as unhas de gel cor de rosa desembaraçavam o cabelo cheio de caracóis bem marcados com laca.
Vai vê-lo logo à noite no café. Respondo à mensagem, perguntava a si própria. Sim, é melhor responder.
“Vlad, não me digas mais nada senão eu morro, o meu coração não aguenta.”
Veste a blusa de licra vermelha decotada e bem colada ao corpo, escolhe a saia mais mini e lá vai ela de saltos altos, cabelos até à cintura. Sim lá está o Vlad, camisa aberta no peito, calças de ganga descaídas, ténis de verniz pretos e brancos.

Jaquina Vanessa treme, escorrega e estatela-se no chão. Levanta-se a custo e a coxear sai pela porta fora a chorar!

Origens



Encontrar a terra ou a água que nos corre nas veias, que nos faz perceber melhor quem somos e para onde vamos. Há os que se perdem porque as raízes secaram, outros que renegam a origem, outros ainda que estonteados não sabem qual é o caminho.
A terra, a água, as rochas abruptas e o mar. Misterioso, profundo. Arrastando-nos na corrente ou deixando-nos exaustos na areia.

Entre o mar e a terra, procuro o início, sou alga ou árvore? Granito ou areia? Barco à deriva à procura de um porto.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O escadote

Só 50 palavras - verbos: fugir, miar, afligir; obrigatórios

O gato da Miss Jenny fugiu para cima da árvore e estava a miar. Miss Jenny afligiu-se “Onde está minha escadota? O cat está miando”. Alguém traz o escadote. Miss Jenny sobe rápida e eis que senão quando já com o cat nos braços o escadote parte-se. Oh, oh,oh!

O meu querido cão



Olhou para trás, procurando os donos. Como se soubesse que eles nunca o abandonariam. Magro, sem forças sequer para se levantar, uma sombra triste do que tinha sido.

Não restava outra solução, ele merecia morrer com dignidade. Olhou-nos novamente quando lhe deram a injecção. Acariciamos-lhe a cabeça até ao fim. Fechei os olhos e viu-o cheio de vigor a correr no jardim.

Uma gota de água



Abriu a janela de par em par, a luz intensa da manhã fê-lo fechar os olhos. O silêncio era absoluto, só uma leve brisa e o cheiro forte do jasmim davam vida àquele lugar. Todo o resto mais parecia um cenário.
Olhou à sua volta, as madressilvas no fim do jardim, as árvores carregadas de flores brancas, prenhes de todos os frutos que estavam para nascer.
No lago os nenúfares dormiam ainda. A água parada, transparente e límpida, como se nada ou ninguém pudesse alguma vez mudar fosse o que fosse. Das folhas das roseiras cai uma gota de orvalho, formam-se círculos, um pássaro pousa na beira do lago, mergulha o bico e sacode a cabeça, parece gostar.

Ele sorri, não, não é cenário, é o jardim da sua infância perdida e julga naquele momento ver reflectida na água a imagem da sua mãe querida.

O navio afasta-se



O navio afasta-se lentamente do cais, as silhuetas ficam cada vez mais indistintas e na memória dos que partem só fica o ronco da chaminé a anunciar a partida.
O mar é escuro, profundo e misterioso, o navio entra nele sem medo, mas atento; à frente está a travessia que se anuncia longa e talvez perigosa. Os dias passam iguais, mar e mais mar, água, espuma, nuvens brancas ou negras, um céu que de vez em quando muda de cor e se torna ameaçador.
Instala-se um sentimento de melancolia, o entusiasmo do início desaparece para dar origem a uma sensação de cansaço e claustrofobia. Há romances que começam, outros que acabam, há traições e mistérios.
As nuvens agitam-se cor de chumbo e as ondas balançam o navio, mais, cada vez mais, varrem-no de lado a lado, da proa à ré, de bombordo a estibordo, violentamente. Uns rezam, outros choram, outros aterrados, esperam. Uma noite de inferno. O navio e o mar, uma luta desigual, as ondas ainda, triunfantes, violentas.

O vento acalma e o navio entra finalmente no porto. Terra enfim; descem os primeiros passageiros, cambaleantes, pálidos, lá em baixo abraçam como zumbies os que os aguardam. Balançam na terra como se estivessem possuídos por uma força misteriosa.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Botox ou não botox, eis a questão

Very short story
Personagens:

Victória - Mulher 50/60 anos obcecada com a aparência
Ana - Filha 
Luigi - Italiano aventureiro

Victória veste-se como se tivesse 20 anos. Obcecada com a aparência, várias operações estéticas, botox, liftings; pouco resta do rosto original. Move-se no mundo do jet set, onde tudo o que parece não é. Procura a eterna juventude, só tem presente, porque apagou o passado e não quer o futuro. Marionete nas mãos dos cirurgiões plásticos que há muito plastificaram a sua cara.
Mais um cocktail, inauguração da loja Adrap. “Ainda bem que o tempo está quente”, pensa Victória. “Assim posso usar o vestido mini e as sandálias Blanik.
O cabelo solto pelos ombros, ela e a filha são tão parecidas. Pernas altas, olhos azuis.
Victória vive para as festas, os cocktails, as inaugurações, é esse o seu desígnio de vida. O espelho reflecte-lhe um rosto inexpressivo, repuxado, uma boca cheia de botox, que ela acha irresistível.
“Acho tanta graça quando me confundem com a Ana.”
Ana olha confrangida para a mãe, que já não tem idade para se vestir daquela forma e cujo rosto é uma imitação do que já fora.
Victória tinha perdido a auto-critica, e quando Ana lhe dizia “Oh mãe mas esse cabelo, parece uma Barbie, já não tem idade para isso..”
“ A menina é uma parva, não vê que não tenho uma ruga e agora que refiz as maminhas já posso usar decotes mais fundos.”
“Oh mãe, já pensou que eu posso sentir alguma vergonha?”
“Sinto-me jovem Ana, sou jovem e adoro que me achem jovem.”
Ana encolheu os ombros, perdeu a esperança de convencer a mãe que gostaria de ver umas rugas, uma marca de vida, que ela teimosamente apaga.
Victória está pronta, patética figura inexpressiva e estereotipada . Acha-se chique, super chique, moderna, ousada.
A passadeira vermelha espera os convidados. Victória bamboleando-se nos saltos altíssimos, sorri à direita e à esquerda.
“Olá querida, olá querido!”
Repara num homem novo que lhe lança um olhar irónico. Não o conhece, quem será, pensa. “Mas é lindo”. O homem lindo fixa os brilhantes, o colar, os brincos.
Victória estremece, o homem sorri e aproxima-se:
“Victória Magalhães?” “Sim, como sabe o meu nome?”
“Das revistas sociais, você aparece sempre e não é fácil esquecê-la”.
“Mas nunca o vi antes…”
“Vivi alguns anos em Itália. Regressei há pouco. Luigi Benedetti, é um prazer conhecê-la.”
“Italiano?”
“Sim, a minha mãe, de Florença...”
Victória sente-se no céu, nas nuvens, num lugar qualquer etéreo e transparente.
Há muita gente, muitas saias curtas, muito sorrisos com botox, muitos cabelos cheios de extensões, muitos homens de camisa branca sem gravata “à la Tom Ford”.
Luigi acompanha-a, sorri, segura-lhe o braço pelo cotovelo, a mão é quente…
Victória sonha.
Acorda no quarto de hotel. De Luigi nem sombra. Levanta-se estremunhada…a taça onde deixara os brincos, os anéis, o colar, está vazia…



Melancolia


A folha em branco. A angústia de a preencher com toda a tristeza que me invade. A tristeza quase felicidade de assim apagar a solidão.

A saudade caminha lado a lado com a solidão. Às vezes até falavam uma com a outra. Habituara-se já aquele diálogo interior. Não conseguia pará-lo nem pedia para se calarem. A tristeza tomara conta dela, invadira-a de tal forma que nada era uma surpresa.
Lá fora o mundo continuava a existir. Tudo estava a mudar, falava-se de uma nova ordem, uns viam no caos a salvação, a redenção; outros mais pessimistas tinham perdido a vontade de lutar e continuar, restava-lhes ver o cenário mudar sem que os actores se dessem conta que o autor morrera e que o fim não podia ser feliz.
Uma civilização que declina, da qual só restarão vagas memórias e alguns livros que já ninguém lerá.

Para ela tudo lhe era quase indiferente… quase, pensou, afinal há um espaço, um espaço que pode ainda ser preenchido e essa réstia de luz, essa felicidade possível seria capaz de apagar a angústia?

Verão Vermelho


Não queria lembrar-se daquele Verão. Talvez o Verão mais quente da sua vida. A água do mar gelada. Uma contradição, uma espécie de castigo, de punição. A noite negra, sufocante, ameaçadora. Impossível dormir mesmo com as janelas abertas de par em par.
Um Verão vermelho, abrasador. Havia no ar uma ameaça, algo que podia acontecer mas que pressentia que não seria bom.
Os arrozais verdes lembrando um relvado, eram uma esperança falsa de uma frescura que não chegava.
Sentou-se na cadeira de balouço, não abrira o livro, não sentia coragem e no entanto era o seu livro, a sua história, a sua vida.
Escrevera-o a custo, vasculhando no armário do passado e encontrara memórias de tristezas esquecidas, de amores vividos e risos perdidos. Nada voltaria, o passado não volta, temo-lo mas não o conseguimos agarrar. O passado é forte, poderoso e frágil ao mesmo tempo.-
A cadeira balançava suavemente e os arrozais agitaram-se com a brisa que surgia vinho mar.

Adormeceu.

HB

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Ponte sobre o rio



Diria que a vida se dividira, como se um rio se tivesse atravessado entre o passado e o presente.
“Só temos o nosso passado” a frase vinha-lhe ao pensamento de forma persistente. As imagens corriam em liberdade, mas tudo parecia afogar-se num mar de sonhos não realizados. Projectos, tivera tantos, que agora a palavra perdera o sentido.
Pensara em escrever mas sentia-se um pouco como um barco à deriva, puxado pela corrente. Tinha consciência e isso irritava-a, que muitas vezes lhe faltara a coragem para atravessar a ponte, a ponte sobre o rio que se multiplicava em infinitos afluentes.
Deixou a imaginação mergulhar nas águas revoltas sem se afligir com a possibilidade de ser levada para longe, muito longe, onde o passado se diluía e o presente podia ser inventado todos os dias.

Ganhar a liberdade que a escrita sempre lhe oferecera e aceitar perder-se na imensidão de uma página branca onde tudo era possível acontecer.

O meu baloiço



Tinha hesitado voltar aquele lugar e aquela casa.  Não era por natureza saudosista e voltar atrás no seu passado e nas suas memórias era-lhe sempre doloroso.
Sim existia o passado, não o negava, nem o repudiava. O presente rapidamente se transformava em passado e o futuro fora sempre algo em que tivera dificuldades em se projectar.
Mas nesse dia não conseguiu escapar. Tinha sido quase uma imposição.  Ele dissera-lhe peremptoriamente :
“Não há como fugir, desta vez vamos até lá.”
Para quê pensou, para quê lembrar tempos que não poderiam voltar, uma infância de liberdade e de descoberta.
“A casa está à venda”, continuou, “vais deixar que apaguem todas as tuas memórias?”
Tocara-lhe no ponto fraco, memórias, não queria que de repente o seu passado fosse conspurcado, espezinhado, como se ela nunca tivesse vivido ali.
“Salvar as memórias”, isso dera-lhe coragem. Lá estava a casa branca, as portadas de madeira fechadas, o jardim descuidado, cheio de ervas. Abriu a custo o portão e angustiada, olhou à sua volta, procurando  a menina de tranças e o cão peludo que nunca a largava.
O balouço ainda lá estava, as cordas velhas, a tábua gasta pela chuva e pelo sol.

O balouço, o seu balouço e foi então que viu a menina de tranças que se balançava bem alto achando que podia voar. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Felicidade...


Querias saber se eu era feliz…perguntaste-me com insistência: “Diz-me foste feliz?”
“Feliz… sim, fui, ainda sou e talvez possa continuar a ser, mas a felicidade não é um estado perene, estável…um dado adquirido; a felicidade é desigual, injusta e fugitiva.”
“Injusta, dizes…”
“Sim tu achas que uns merecem ser felizes e outros não? A felicidade conquista-se?” Perguntas.
“Não, constrói-se, desconstruindo. Precisas de te habituar a esquecer e perdoar, tenta voltar a ser criança e talvez voltar a sorrir. Vês, esboçaste um sorriso, já é um começo “
“Mas quando ele se foi embora sofreste que nem uma condenada.”
…”Sim, condenada a esquecer, a apagar as emoções, os sonhos, as recordações, mas queimei tudo, lembraste? E escrevi-lhe:
“Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros, desapareceste tu”.

“Foi brutal, mas libertei-me, as cinzas são levadas pelo vento, o chão fica limpo outra vez e consegui caminhar à procura da luz e algo a que pudesse voltar a chamar de felicidade. Encontrei, nada foi em vão.”

O comboio



O comboio passava três vezes. Ouvia-se à distância. Ela contava sempre. Era o último. Saiam como que esquecidos de tudo. Um rebanho paciente cuja vida pouco lhes dera. Vinham de sítios diferentes, mundos que não eram novos. Só diferentes. Muitas vezes procuravam um olhar, talvez um ombro que os consolasse.
Ela procura reter as expressões, entender as frases. A fala era áspera. Muitos aconselhavam a não se meter. A mãe também lhe ralhava. Mas ela precisava entender. Os homens diferentes de fala áspera. Tristes como se a vida os atrapalhasse. Mas nada acontecia. Viravam a esquina como se nós não existíssemos.

Nunca falaram connosco e ela não os esqueceu nunca.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O passado é um presente?





O passado é um presente, presente como? Presente como a única coisa que temos a certeza que possuímos, que é nossa, exclusivamente nossa, sim, o passado é um presente que a vida nos foi oferecendo ao longo dos anos e que fomos ou não capazes de saborear, de aproveitar, de desperdiçar.
Quanta vida, tempo de vida que deslizou por entre os dedos, sem que nos preocupássemos um segundo que não o recuperaríamos nunca, que deitámos pela janela fora sem nos apercebermos que ele não voltaria mais.
O tempo é a estrada da nossa vida. Lembro-me de um amigo que não sabia guiar e pedia sempre para o levarem pelo caminho mais bonito, com curvas e contra curvas, com a vista surpreendente do mar, do precipício, das rochas abruptas, da subida difícil pela estrada estreita da montanha, da paisagem que de repente nos corta a respiração.
E quando cai um nevoeiro cerrado, que nos impede de perceber para onde vamos mesmo com os faróis acesos numa tentativa de encontrar a direcção correcta, resta-nos esperar que o fim não esteja tão longe assim.
O presente é tão fugaz que se perde entre o passado que sabemos ter e o futuro que queremos ter.

HB


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Desafios - Um pinhal - Um cesto de verga



  
O pinhal era a paisagem da sua infância e adolescência. No Verão as pinhas caíam e a caruma atapetava o chã; cheirava a calor e a liberdade. O cheiro está dentro dela, vivo para sempre na memória e o pensamento procura encontrar a sensação antiga da liberdade perdida.
O cesto de verga que segura no braço está vazio, quer enchê-lo de memórias felizes, enterradas fundo, tão fundo que só a liberdade pode ser capaz de as trazer à superfície.
Liberdade de pensar, amar, escolher, sofrer. 
O cesto ainda está vazio e de repente um cão branco aparece, traz na boca uma pinha que deixa cair a seus pés, depois corre novamente e traz outra pinha e mais outra e outra. O cesto está agora cheio, e o cão branco fugiu sem deixar rasto.
As pinhas libertam o perfume do sonho e da imaginação, onde tudo era possível, quando o passado ainda não existia, e o futuro era a eternidade.

Os anos apagavam-se como se nada tivesse acontecido, ficava só aquela sensação luminosa de um espaço imenso que podia ser conquistado.

Para sempre...?


Disseste que “me amavas e que seria para sempre.” Sorri céptica. “Tudo na vida é provisório, meu amor, tudo. A única coisa que temos a certeza de ter é o que vivemos ontem e talvez o que vivemos hoje.”
Olhaste-me espantado, não esperavas a minha reacção…”Mas tu és minha, eu sou teu…”
“É isso mesmo” respondi-te; “não gosto de espaços fechados, sufoco…A posse é um terreno escorregadio e perigoso. Não me convides para essa viagem onde rapidamente me perderias”.
O silêncio tomou conta de nós. Estamos em campos opostos. Um queria dar, o outro possuir. Se abríssemos os braços para nos aconchegarmos ficaríamos reféns um do outro.
As flores renasciam à nossa volta, vivas e frágeis. Apanhei um malmequer e dei-to   “Malmequer, bem me quer, muito, pouco, nada".

domingo, 6 de outubro de 2013

Os dias da semana / De hoje ... Até onde a memória nos levar



 Domingo, Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado

Hoje os dias da semana têm o perfume da liberdade. Todos eles dão espaço ao silêncio e à reflexão. Cada um tem o seu peso e talvez seja o Domingo o menos livre de todos.
Livre, a palavra parece tão simples…e acaba sendo uma espécie de puzzle onde se encaixa a rotina, a responsabilidade, a fantasia, o medo…Livre para gerir o seu tempo, parece-lhe uma versão economicista da liberdade.
Lembra-se quando as segundas-feiras eram sinónimo de trânsito, escritório, trabalho com agenda curtíssima, eventuais gritos do chefe, uma espécie de escravatura, bem vestida e alimentada.
Depois seguia-se a habituação: terça, quarta, quinta, horas cada vez mais carregadas, tensão aumentada, nervos esticados ao limite. Stress – odiava a palavra, para uns desde o momento que estivessem stressados, sentiam-se importantes, afinal só tinha stress quem era competente, competitivo, olhando para a frente, nunca para trás.
Sexta-feira por muito má que fosse funcionava como ante câmara de algum tipo de descontracção e a palavra mágica liberdade, fazia sentido.
Mas tudo isso já não a incomodava. O tempo tinha outro significado. Não precisava correr, ele corria por si.
Houve um tempo em que os dias da semana tinham pausas de ansiedade e paixão. Todo o resto se apagava e as horas eram minutos. Impossível fazer o tempo andar mais devagar. Fugia-lhe entre os dedos deixando um sabor amargo de solidão. Era um tempo sofrido e intenso que a deixava exangue.

Não queria ou queria esse tempo de volta? Não, não queria voltar atrás, regressar, enganar-se outra vez, perder-se outra vez, reencontrar a estrada e continuar a caminhar; deparava-se sempre com subidas e descidas, curvas e contracurvas. Mas agora que conhecia o caminho não tinha medo.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Para não escrever a minha vida, escrevi a tua




Sim, é mais fácil, tu és eu, e toda a gente vai perceber, mas é mais fácil, ao escrever em teu nome posso dizer tudo aquilo que não posso se for eu a assinar.
Então está combinado, tu és eu, e assim posso perdoar-te  as fragilidades, as palermices, os teus erros, as tuas vitórias, as tuas derrotas.
Eras doida, sem saberes ou talvez não o quisesses saber ou talvez tivesses medo de o saber.
Quiseste levar uma vida a que se chama normal e com a tua idade, deste-te mal. A normalidade não era o teu terreno e claro patinaste. Ficaste arranhada, magoada, às vezes perdida.
Valeu-te o teu instinto de sobrevivência, que não sabias que tinhas, mas que foste obrigada a conhecê-lo e foi ele que muitas vezes te atirou uma corda a que te agarraste com força até voltares à superfície.
Depois combinaste o incombinável, liberdade e maternidade. Corrias para a liberdade mas davas-lhe outros nomes, paixão, independência, o que te convinha na altura. A maternidade impediu-te a liberdade, impôs-te barreiras que aceitaste sem discutir. Mátria, não materna.- Não meiga e terna, simplesmente raízes e terra.
Tu eras um perigo sem saberes, uma ameaça que não querias ser.
Depois o tempo foi passando e encontraste o equilíbrio dentro do caminho cheio de curvas que escolheste.
E agora que vejo algumas rugas no teu rosto ainda sorridente, olho a serenidade no teu olhar.
HB


"Ela balato"





 Sexta-feira treze!



Levantou-se estremunhada. Mais uma vez o despertador não tocara. Odiava, odiava ter que se arranjar à pressa, não ter tempo para tomar o pequeno-almoço, apanhar um trânsito infernal e chegar inevitavelmente atrasada à reunião.
Tinha jurado que não compraria mais nada na loja do chinês, mas o relógio era tão barato, “ela tão balato” dizia a chinesa de cabelo escorrido e sorriso igual a sempre.
Ela levou o despertador para casa, à conta do “ela balato”. Lembrava-se do dia em que o marido da chinesa lhe tinha dito que a geringonça para tirar os borbotos da lã só trabalhava com “pilas glandes”. Entrou no jogo das “pilas” e comprou a geringonça que até era eficaz. Mas o despertador não. Não havia “pilas glandes” ou pequenas que lhe valessem.
A culpada era ela… e agora afogueada, uma malha no collant preto, o cabelo uma verdadeira juba, tenta pôr o carro a funcionar, não pega, tenta mais uma vez, silêncio total, liga o telemóvel… e vem de lá uma voz  “lamentamos informar, mas o serviço está suspenso…” “Merda, esqueci-me de pagar”. Não há volta a dar-lhe, não pode ir à reunião, não naquele estado calamitoso.

Tenta abrir a porta de casa, a chave? Esqueceu-se, não está na carteira…” “Ela tão balato”

HB

Labaredas




Foi um dia estafante. A agenda sem um único espaço livre; os doentes mais doentes do que o habitual. “É a crise com certeza”, pensou…”as pessoas estão a ficar mais malucas, desatinadas, sem saber para onde vão, “é terrível a desesperança” e “este país é mínimo, um pobre rectângulo, com o mar de um lado e a Espanha do outro. Estou cansado, farto.”
Mário caminha a passos largos pela avenida. O ar está frio, mas o céu limpo sem uma nuvem. Respira fundo, dentro de pouco tempo estará em casa. Apressa-se, precisa do seu refúgio, do sofá de pele, da música baixa, do whisky sempre da mesma marca.
Abre a porta do apartamento, o cão não vem ao seu encontro, chama-o “Pepsi, Pepsi”, mas não há Pepsi; sente um sobressalto, “alguma coisa aconteceu” pensa. Olha em frente, a porta do escritório está entreaberta, empurra-a com força e pára estupefacto. Vazio, completamente vazio, nada, não há nada, só um envelope branco no chão. Abre-o com medo, reconhece de imediato a letra…
E lê:
“Julgavas então que estava tudo acabado. Que cada um ia para seu lado, muito bem-educados e resignados. Não me conhecias e assim descobres com surpresa, penso, a mulher que tinhas a teu lado.
Levei tudo e a esta hora estará tudo queimado. Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros. Desapareceste tu. Por mim estou aliviada. Queimei-te também”.


HB

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Jean Christophe" para a Rosi



Falei-te deste livro muitas vezes, li-o há muitos anos, quando tudo era ainda desconhecido para mim; a vida, a paixão, a morte. Chorei e sofri ao lê-lo, mas não o esqueci nunca, por isso o escolhi para ti.
Rias-te, dizias que era a minha bíblia, irritavas-me e não me esqueço. Ofereço-te hoje depois de tantos anos, como vingança dessa ironia imatura.
Tenho saudades do tempo da voragem, da fome, quando um livro era sempre mais uma descoberta, um passeio, uma viagem, um drama vivido também por mim.
“Jean Christophe”, a solidão, a amizade, o amor. As lágrimas que corriam sem eu as poder parar, a sofreguidão da leitura.
O tempo apagou o ímpeto, talvez porque a vida se encarregou de se tornar um livro, que procurei escrever, muitas vezes sem me preocupar com o ritmo, a velocidade, o perigo.
E por isso me lembro de “Jean Christophe” e a emoção com que o li. Porque nessa altura eu gostava da tristeza sem ser triste, e compreendia a solidão sem estar só.
A vida, capítulos que se escrevem, que se encerram. Volume I, II, III,  e talvez ainda o IV e o V. Não pensei que o livro fosse tão longo.

Rias-te, quando eu vivia pelo “Jean Christophe” e para o “Jean Christophe”. E hoje, porque não te perdoo se não o leres, vais perceber a minha emoção.