terça-feira, 24 de março de 2015

Homens de fala áspera

O comboio passava três vezes. Ouvia-se à distância. Ela contava sempre. Era o último. Saiam como que esquecidos de tudo. Um rebanho paciente cuja vida pouco lhes dera. Vinham de sítios diferentes, mundos que não eram novos. Só diferentes. Muitas vezes procuravam um olhar, talvez um ombro que os consolasse.
Ela procura reter as expressões, ouvir as frases. A fala era áspera. Muitos aconselhavam a não se meter, mas ela precisava entender. Os homens de fala áspera. Tristes como se a vida os atrapalhasse. Mas nada acontecia. Viravam a esquina como se nós não existíssemos.

Nunca falaram connosco e ela nunca os esqueceu.

"Já não dá ...desculpe"


Sabe que não tem muito tempo, mas não se atreve a olhar para o relógio, prefere pensar que o que lhe resta é dela e só dela; do outro lado está ele, separados por uma barreira de vidro, onde por um pequeno orifício podem proferir algumas palavras. “Não chores, tudo vai passar…”
Ela tenta sorrir, dizer-lhe que o amará para sempre, que nada os separará. Mas a voz fica embargada na garganta, e agora soluça convulsivamente. O rosto dele está transtornado pela dor e pela comoção. Consegue ainda esboçar um gesto como se lhe acariciasse os cabelos.
Ouve-se uma sirene, acabou o tempo; ela não consegue levantar-se; ele olha-a, procura um sorriso, uma luz.
Alguém aproxima-se e diz:

“- Já não dá…desculpe.”                         

sexta-feira, 20 de março de 2015

Intolerância, Posse ...Amor?

Tinham-me dito que ele era teimoso que nem um burro, mas que era muito inteligente.
Pensei:  “Não é possível, ou o homem é teimoso e burro, e pronto é uma chatice ter que o aturar, ou o homem é inteligente e vai ser capaz de entender a minha argumentação; claro que tenho que ir bem preparada, parece-me evidente que ele não quer ceder a ninguém, e portanto criou uma barreira à sua volta para não se deixar influenciar.
A tarefa não seria fácil, o assunto era delicado, deixar que a única filha, seguisse a carreira teatral, mas contrariar aquele imenso talento era uma forma de castração e violência, palavras que não poderia usar nunca.
Entrei na sala sem medo.  Olhou-me com altivez e soltou um “sente-se se faz favor. Sei ao que vem, diga-me o que tem a dizer, não tenho tempo a perder.”
“ Não quero que perca tempo, ao  contrário gostaria que ganhasse tempo. De reflexão e de sensibilidade. Ama  a sua filha e tenho a certeza que quer o que pensa ser o melhor para ela…mas o melhor para os nossos filhos não é prendê-los com uma  corrente, como se fossem propriedade nossa e impedi-los de voar.”
“Eu sei o que é melhor para ela.”
“Não, desculpe sabe o que é melhor para si, não para ela.”
“Não quero que ela sofra.”
“Nenhum pai quer que os filhos sofram, mas quer maior sofrimento que matar os sonhos, o talento, impedir o voo livre de alguém que tem o talento  da sua filha. Já pensou como aquilo a que chama amor pode ser sinónimo de posse e crueldade?”
Olhou-me surpreso…“Explique-se um pouco melhor se não se importa".

quinta-feira, 12 de março de 2015

Guerra

Luísa aperta a carta contra o peito. Há dois meses que espera notícias de Miguel.
Sabia que ele não lhe escreveria com frequência. Partira numa missão altamente perigosa e secreta. Telefonemas e emails estavam fora de questão, poderiam constituir pistas.
Luísa senta-se, abre o envelope com cuidado, desdobra a folha de papel branco e olha sôfrega a letra inconfundível de Miguel.

“Meu amor,
Sei que estás impaciente e reconheço como deve ser difícil a minha ausência e o meu silêncio. Conheces as razões. Mas o meu corpo, o meu espírito estão impregnados de ti. Às vezes parece que sinto o teu perfume e que acaricio a tua pele macia. Depois acordo sobressaltado.
Não sei quando voltarei a escrever-te, é tudo muito complicado, mas agarro-me à certeza que nada, nem ninguém nos separará.
Amo-te e podia repetir amo-te, amo-te, amo-te, até à exaustão.”

Luísa respira fundo, limpa as lágrimas que não consegue reter.
“Miguel quando voltas meu amor, minha paixão, minha vida…”
Os meses passam sem notícias, sem cartas, o vazio total.


Um dia a campainha toca, tem a certeza, é o Miguel, corre doida até à porta. Abre-a de rompante. Sim é o Miguel, sentado numa cadeira de rodas.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Fiel e Fugidia ...Felicidade



Se pensarmos, se quisermos ser racionais, sérios, adultos, chegamos à conclusão que temos razões para nos sentirmos felizes.
O mal é querer que a felicidade seja duradoura como se fosse um bem adquirido. A felicidade é feita de momentos, de retalhos, às vezes de migalhas. Somos ambiciosos  e desprezamos os sinais, mesmo pequenos, que ela está ali, ao nosso lado, à nossa espera.
Hoje repito a frase dita por um amigo:  “Le malheur de t’avoir perdu, le bonheur de t’avoir connu”. A felicidade de ter conhecido a felicidade, só nos pode dar a certeza que podemos agarrar na nossa memória o sentimento, a emoção e reencontrá-la.
Às vezes passam tempos em que temos a sensação que ela fugiu e que não a recuperaremos nunca mais e penso, sem poder pensar, sem poder imaginar, sem poder sentir, achando quase um sacrilégio poder pensar, naqueles que há setenta anos viram abrir-se as portas de Auswich, de Dachau, aqueles que sobreviveram, aqueles que um dia voltaram a sorrir…

É preciso tornar a felicidade mais próxima, relembrar, reconstruir. Apagar, sim apagar muita coisa, mas agarrar um sorriso, um raio de luz, uma flor que se abre, um pingo de chuva. Agarrar a vida, e sublinhar todos os dias, os momentos, os segundos em que ela estava ali. Fiel e fugidia.