sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Zeppelin ou Balão Voador?


O meu pensamento não me pede autorização, viaja para onde quer e aterra sem paraquedas onde lhe apetece. Às vezes o choque é brutal, de repente apaga quarenta anos da minha vida e lá estou eu a chegar ao Brasil, a instalar-me em S. Paulo, a sentir-me a pessoa mais infeliz do mundo e a perguntar-me até à exaustão, “o que estou eu a fazer aqui, o que estou eu a fazer aqui, onde estão os meus hábitos, as minhas referências, os meus amigos…onde estou eu?” As possibilidades de voltar são mínimas, a capacidade de me adaptar reduzida a zero porque não sei onde estou. Não reconheço a língua, não encontro o meu ritmo, estou perdida e triste. Só tenho um pensamento que ocupa todo o espaço, “quero ir-me embora, quero sair daqui”. Estou aprisionada numa cidade gigantesca onde não consigo encontrar nada que me seja familiar.
A impossibilidade de encontrar uma saída obriga-me a criar uma rotina, “uma rotina de sobrevivência”. Talvez assim eu seja capaz de reencontrar alguma normalidade e de me reconciliar comigo própria.
Logo a seguir o balão voador arrasta o meu pensamento para longe e aterra suavemente em Florença. A minha primeira viagem a Itália, o Brian que não sabia uma palavra de latim mas que era capaz de “parlare italiano” muito melhor do que eu, explicando as razões porque tínhamos chegado mais tarde do que o previsto, que estava fora de questão procurar outro hotel e conseguindo convencer o director com os seus argumentos ingleses certamente temperados com orégãos e manjericão. Eu deslumbrada, e já na rua “dopada” pela beleza de Florença ao cair da noite, gritando a plenos pulmões “thank god, I am alive and I am here” e o Brian com a sua fleuma britânica a perguntar-me “are you crazy darling?”, “Yes I am crazy”. Essa extraordinária sensação de deslumbramento que se manteve inalterada sempre que voltámos a Itália. “Yes  I am crazy”!
Mas o balão levanta voo novamente e chego ao Rio de Janeiro no Carnaval. Vou desfilar mais uma vez na Portela. Fazemos parte da equipa da frente, somos os Pássaros Negros. A carnavalesca sou eu e os meus amigos queridos John e Olga, e lá enfiamos as fantasias apertadas de lycra preta, as botas douradas e o chapéu de plumas negras, o delírio total, as mil gargalhadas, os arames da gola quase nos estrangulam, o samba entra nas nossas veias, durante umas horas somos cariocas, carregamos nos rrs e divertimo-nos muito!
Finalmente o meu pensamento cansou-se, enfia-me num zeppelin e aterro em casa. Reconheço os cheiros, as sombras, a luz, os contornos, as pessoas, o vozear, a água do rio, sinto uma doce e calma sensação de pertença.


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Cachupa e bolo inglês



Viemos para Lisboa quando rebentou a II Guerra Mundial. A companhia inglesa que explorava as minas de lousa, perto de Valongo, e onde o meu pai era director, encerrava as suas actividades, enquanto os homens eram chamados a alistar-se no exército de Sua Majestade, o rei Jorge VI.
Lembro-me da viagem de volta, com o Ford atulhado de tudo o que não coubera na camioneta, do gato preto de nome Gepeto, e do cão branco Bouboule, que calmamente e em plena harmonia, dormiam no chão do carro. O Bouboule, herdara o nome de um cómico francês da época, e que o meu pai francófilo e anglófilo de alma e coração, lhe tinha atribuído. o Bouboule viveu até aos dezoito anos, perseguindo ferozmente ratos e gatos, excepção feita ao Gepeto de quem era amigo do peito.
Uma vez instalados no Bairro Azul, passámos a ter em casa, um bando de mulheres que faziam parte da nossa organização familiar. A minha mãe, que se devia sentir poderosíssima, comandava, bastante mal, todas essas mulheres, necessárias para que o lar, mais azedo do que doce na maioria das vezes, funcionasse condignamente. Lembro-me das criadas, muitas Marias e algumas Rosas, das mulheres-a-dias que teimavam em chamar-se Conceição, da D. Alice costureira e da tia Júlia.
A tia Júlia era meia-irmã da minha querida avó Maria, mãe do meu pai, e filha mais nova do meu bisavô Francisco, um comerciante de sucesso na cidade do Mindelo, capital da ilha de S. Vicente. O avô Francisco tinha chegado a S. Vicente, quando a ilha se tornara escala obrigatória a meio do Atlântico, para abastecimento de carvão de navios de todo o mundo. O Porto Grande fervilhava de actividade, e de nacionalidades, e a casa comercial do meu bisavô ia de vento em popa. O Mindelo era, à sua escala, uma cidade cosmopolita, com uma vida cultural bastante intensa, e onde a influência inglesa se fazia sentir em vários aspectos da vida social e desportiva. Até um campo de golfe havia na altura. Em 1874 eram amarrados os cabos submarinos de telégrafo da Western Telegraph Company, ligando assim S.Vicente à Madeira e ao Brasil, e poucos anos mais tarde a África e à Europa.
A Julinha, como era chamada por todos os parentes mais próximos, nasceu e cresceu no Mindelo, numa casa grande e abastada, mimada e estragada pelo pai Francisco que lhe permitia todos os caprichos. Vaidosa, senhora do seu nariz, petulante, recusara com altivez todos os pretendentes que lhe tinham aparecido, e viera para Lisboa, dizia-se à boca pequena, na esteira de um amor ilícito, e acabara, obviamente, solteirona. Teria uns cinquenta e poucos anos, quando passou a fazer parte do grupo de mulheres que povoaram a minha infância.

Tinha sido uma mulher bonita, de feições harmoniosas; as fotografias da época mostram-na com o cabelo apanhado com graciosidade, blusas brancas cheias de pregas e folhos, uma cintura de vespa e um olhar altivo e mordaz que conservou até ao fim.
Voluntariosa, impetuosa, e pouco previdente, a família acusava-a de ter deixado o pai, velho e doente, para seguir mais um dos seus caprichos, a tia Júlia tinha, quando eu a conheci, pouquíssimo dinheiro; vivia numa parte de casa alugada, próximo do Saldanha, mas isso não abalara o seu orgulho, que se mantinha inalterável.
Duas vezes por semana vinha passar o dia a nossa casa. Chegava de manhã, instalava-se na marquise, junto à sala de jantar, e entretinha-se a bordar, a fazer tricot ou a ler o jornal. Almoçava, tomava chá, jantava, e depois ia a pé, tranquilamente, para casa.
Não era meiga, não gostava de crianças, não brincava comigo, nem me contava histórias engraçadas, mas também não procurava enfiar-me coisas idiotas na cabeça, como uma menina que se preze tem que saber bordar, ou costurar, ou qualquer outra coisa que se identificasse com a imagem da boa dona de casa, e constituísse o modelo a ser seguido, por qualquer ser do sexo feminino, que quisesse ser considerado digno de respeito.
Na realidade, a tia Júlia nunca tinha sido boa dona de casa, vivera cercada de serviçais que satisfaziam as suas vontades, mandava e desmandava a seu belo prazer, e mesmo sem um tostão, nunca a vi ter um gesto de humildade ou submissão. Punha defeitos em tudo; a carne não estava bem assada, as fatias do bolo eram demasiado finas, o arroz estava colado, as laranjas eram amargas. O meu pai, sobrinho dela, irritava-se imenso e ás vezes dizia algo mais ríspido, mas isso não parecia incomodar a tia Júlia, que continuou a passar os dias em nossa casa, até finalmente, ir para um lar da terceira idade.
De vez em quando a minha mãe tinha umas ideias malucas, e lembrava-se de pedir à tia Júlia para fazer bolo inglês ou, quando alguém que vinha de Cabo Verde tinha trazido na bagagem, feijão pedra, favona e outros ingredientes indispensáveis para preparar a cachupa.
Instalava-se então o caos na cozinha; a tia Júlia dava ordens, voltava aos seus tempos de glória da casa grande do Mindelo, e punha as Marias, ou as Rosas do momento, completamente ensandecidas. “Maria põe o feijão de molho, Rosa bate as claras em castelo, Maria unta a forma, Rosa acende o forno, Maria bate a manteiga com o açúcar, Rosa depena o frango, Maria prepara a abóbora e a batata doce…”. A minha mãe dizia que a Julinha era impossível, e que nunca mais lhe iria pedir para cozinhar fosse o que fosse, até à próxima, claro.

Penso que a minha mãe, que adorava o Carnaval, achava graça aquele folclore que quebrava a rotina e a monotonia, e que finalmente resultava num excelente bolo inglês, ou numa exótica cachupa.
O bolo inglês tinha que ter todos os ingredientes, as frutas cristalizadas, as nozes, as amêndoas, as uvas passas, o açúcar amarelo, a manteiga, o brandy. No tempo do Mindelo, a tia Júlia, mantivera relações de amizade com algumas das famílias inglesas e teria sido certamente uma das suas amigas, que lhe deu a famosa receita do bolo que ela iria repetir, sempre que alguém, que não estivesse no seu perfeito juízo, lhe desse essa oportunidade.

Bolo inglês e cachupa não eram compatíveis; ou um, ou outro. Não havia tachos, nem Rosas, nem Marias que aguentassem; nem mesmo a minha mãe se atreveria a tal ousadia.
Ficou, na minha memória gustativa e olfactiva, o sabor amanteigado do bolo inglês, o cheiro caramelizado das frutas cristalizadas; da cachupa e o seu gosto exótico e tropical, os legumes adocicados, os enchidos e as carnes cozidas que se desfaziam na boca. Ficou desperta a minha curiosidade, e a vontade de experimentar novos sabores, de viajar para terras longínquas através de especiarias, frutos, cheiros e gostos diferentes.

Devo à tia Júlia, ter-me aberto a porta de um mundo rico e saboroso, sempre possível de ser renovado, sempre possível de ser reencontrado. Devo à tia Júlia, a quase incapacidade de me disciplinar perante os tachos e panelas que vou sujando e usando sempre que início uma nova viagem gustativa. 




segunda-feira, 6 de novembro de 2017

"Assim que começou a desmanchar a mala, percebeu que se enganara no destino”


Prepara a viagem com todo o cuidado. Tudo tinha que dar certo, seria um encontro definitivo, nada seria como dantes.
Sabia que as palavras podiam ser escorregadias e que se prestavam a interpretações às vezes perigosas.
“É um campo minado”, pensou, “se dou um passo errado, todos os sonhos, todas as esperanças, tudo desparece num segundo”.
Ele escolhera o local, a hora, o dia. Ela limitou-se a dizer sim. A única coisa que lhe enchia o pensamento era imaginar o encontro, o abraço apertado, as lágrimas de comoção.
Chegou sozinha, tinham combinado assim, o voo fora longo e cansativo. O hotel era longe, num lugar perdido, feio e triste. Olhou à sua volta, as paredes cinzentas, a cama estreita, a janela que não se abria…começou a desmanchar a mala e naquele momento percebeu que se enganara no destino.
Deveria ter sido capaz de ler os sinais, de perceber que tudo não passava de uma armadilha, uma forma cínica, cruel de lhe dizer que tudo acabara e que nada mais havia a esperar.

Os soluços rebentaram como uma tempestade.