segunda-feira, 22 de maio de 2017

Vai Abrir

Na esteira de António Lobo Antunes….
Vai abrir…
Duas palavras mágicas, só para iniciados, só para aqueles que passaram ou passam o Verão na Praia das Maçãs e arredores.
Não tenho culpa de ser da mesma geração do ALAntunes, e como ele ter passado vários verões naquela região. Também os meus pais, definitivamente o meu pai, preocupado com a sua filha a todos os níveis, saúde, estudos, amigos, amigas, baptizar ou não baptizar, (ter a primeira filha aos quarenta anos é o que dá), a minha mãe catolicamente castigava, o meu pai descrente perdoava, e achando que o Estoril como lugar de férias contribuía muito pouco para me dar um ar saudável e ganhar uns quilos receando uma anorexia sem qualquer razão aparente que a fizesse prever e que nunca aconteceu, resolveu a bem da minha saúde que também nunca se revelou frágil, levar-nos a banhos para a Praia das Maçãs. Não ficámos na Pensão Central como ALAntunes mas na Pensão Royal da D. Beatriz que diziam as coscuvilheiras da época, mantinha um romance com o Sr. Alves dono da farmácia.
Lembro-me de ter tido pena de deixar as minhas amigas do Estoril, a Zeca Freitas e a irmã Teresa, a quem chamavam de Petite, a Paula Cunha que ficava na quinta da família em S. Pedro, onde havia um lago e uma figueira imensa coberta de figos e formigas, mas gostava demasiado do meu pai para contestar a sua decisão. Senti-me peixe fora de água naquela pequena aldeia que era e é a Praia das Maçãs. Aos poucos apareceram amigas e amigos com quem acabei por fazer o chamado grupo, primeiro foi o grupo da Praia das Maçãs, depois o grupo do Pinhal, mas fosse qual fosse o grupo todos  conheciam a expressão “vai abrir”.
Era uma espécie de chamamento, um tipo de sebastianismo ao contrário, porque D. Sebastião estava previsto que chegasse numa manhã de nevoeiro e nós de nevoeiro não nos podíamos queixar. Persistente, insinuante e traiçoeiro, o nevoeiro fazia parte integrante das nossas férias, mas como a esperança é última a morrer assim que um ténue raio de sol conseguia atravessar as nuvens, lá se erguiam vozes a anunciar o milagre, “vai abrir, vai abrir”… 
Na maior parte dos casos o astro rei permanecia completamente indiferente às nossas preces e lá nos brindava com mais nuvens espessas que às vezes num exercício de pura perversidade só se desvaneciam ao final da tarde, quando já era tarde demais para praia e mar.
E assim se passavam as férias à mercê de um astro temperamental que se estava bem nas tintas para os nossos planos … noites quentes sem cobertores? Pura quimera. Jantares ao ar livre no jardim à luz das velas? Puro devaneio romântico. Passear à noite sem um casaco de malha? Caminho directo para uma constipação.
Mas, há sempre um mas, nos dias em que por razões metrologicamente inexplicáveis a manhã nascia com um sol radioso e que o mar se apresentava calmo sem ameaçar ninguém de morrer afogado à primeira braçada, aí então a euforia era completa, está sol, está sol, a bandeira está verde, verde, verde!!!
Ir à Praia Grande nesses dias longínquos era uma aventura, não havia estrada e lá se descia pelo caminho de terra e pedras com cestos de piqueniques, cadeiras de praia, chapéus-de-sol e ainda mais cestos. Voltava-se de lá torriscado, com um escaldão equivalente a uma queimadura do terceiro grau mas com uma sensação fantástica de liberdade feita de sol e água salgada!
Muita coisa mudou ao longo dos anos, mais gente, surfistas aos montes, mais estradas, mais casas, mas nada nem ninguém consegue mudar o mau feitio do astro que comanda a nossa vida. E nos dias em que ele está zangado lá se volta a ouvir o mesmo grito de esperança “vai abrir, vai abrir”!




quarta-feira, 17 de maio de 2017

A verdade e só a verdade

O silêncio tomou conta de nós. Parámos, ficámos a olhar um para o outro.
Tínhamos dito coisas a mais, violentas e duras.
Ele olhava-me com tristeza e os olhos enchiam-se de lágrimas. Comecei a falar, a voz grave, séria, melancólica:
-Excedemos-nos, fomos para além do possível, do perdoável, restam-nos talvez as memórias, lembranças de dias luminosos, onde a esperança entrava triunfante de braços abertos. Acreditámos que só a verdade nos podia conduzir e esquecemos que a verdade é muitas vezes implacável e desperta em nós sentimentos confusos, entre o ódio e a vontade de compreender. Desconhecíamos a nossa incapacidade de perdoar, a nossa intolerância.
Fomos vítimas de um juramento imaturo: “A verdade, e só a verdade e acima de tudo a verdade.”
Como nos enganámos; a verdade matou a nossa relação, a nossa paixão. Agora só nos resta dizer adeus, mas peço-te por favor para não desejares que eu seja feliz. Não vou ser, talvez um dia quando a tua verdade se apagar dentro de mim.
Vai, vai-te embora agora, eu preciso ficar.

O sol põe-se incandescente no horizonte.

HB



segunda-feira, 15 de maio de 2017

Folhas soltas

Agradeço aos deuses

Agradeço o amor à vida, a capacidade de renascer, de me voltar a pôr de pé e continuar a sorrir.
Agradeço o meu sentido maternal e aglutinador, a minha capacidade de unir os meus filhos e os meus netos.
Agradeço a minha curiosidade insaciável e poder continuar a surpreender-me.
Agradeço a serenidade com que entro na última fase da minha vida.

Matriarca
Lembrava-se da matriarca daquele filme que vira há alguns anos atrás.
Figura imensa, maternal, justa e liberta, criando um circulo uterino, um porto de abrigo, onde as mulheres se acolhiam quando num mundo comandado pelos homens, precisavam de uns braços ternos e fortes que as protegessem das tempestades. À sua volta estavam as mulheres da família, a empregada doméstica que um filho estouvado e inconsequente engravidara, e também o amante, amigo, cúmplice e confidente de toda a vida.
As mulheres soberanas, portadoras da vida, defensoras da eternidade.
Ela abrira os braços à amiga, desfeita por um amor impossível, o coração dilacerado, o tempo a parar porque não concebia a ideia de continuar a viver. E ofereceu-lhe a sua generosidade, a sua capacidade de ouvir e sentir… recebendo em troca lágrimas libertadoras e um sorriso comovido!