segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Um rapaz brinca numa rua deserta. O vento é muito. A sua atenção está centrada num boneco de cartolina.

Allegro

O miúdo já sabe; aquela hora a rua está deserta. A rua é dele, lá pode jogar à bola como quer, imitar os passes que vê na televisão e sentir-se um ídolo; vê-se no meio do campo aclamado de pé. O clube dele ganhou por 3 a 0, foi ele que marcou os três golos. Vai conseguir tem a certeza. Hoje a tarde está ventosa, um vento do norte frio e agreste, mas para ele o que é importante é a bola e os seus pés a dominarem-na.
Há um boneco grande de cartolina no fim da rua. É o Cristiano Ronaldo numa publicidade que ele ainda não percebeu do que se tratava. “Vou chutar, vamos lá ver se ele sabe defender.”
Chuta com força, mas o vento é forte, empurra a  bola para trás… corre, chuta com mais força, toda a força e a bola apanha o boneco em cheio. Salta de alegria “venci, venci o meu ídolo”, aproxima-se para apanhar a bola e o vento traz-lhe estas palavras “Um dia serás maior do que  eu, não desistas nunca.”

Grave
 O mesmo tema - outra história

O miúdo joga a bola na rua deserta, a rua está sempre deserta. É uma rua fria e suja, sem saída, todos se conhecem mas ninguém se ajuda. Todos desconfiam de todos. A ele resta-lhe a bola, o único presente de aniversário que a mãe lhe deu antes de morrer. O pai é um brutamontes, não fala, chega cansado e comem o que houver, silenciosos, não dizem uma palavra.
Com a bola ele pode falar, acaricia-la, insultá-la e chutá-la. Ela não o deixa só. Gostam um do outro. Colocaram um boneco de cartolina no final da rua. Ainda não viu bem do que se tratava. Aproxima-se para ver melhor, é a fotografia do pai  -  em baixo pode-se ler:
Ladrão e assassino perigoso
O miúdo corre para casa quer avisar o pai, quer que ele fuja…tarde de mais, ao abrir a porta, o corpo do pai jaz inerte no chão.

Lágrimas



Raquel deixa o carro no estacionamento e dirige-se com passos firmes para o consultório. Depois de umas semanas de dor e vazio, readquiriu alguma calma interior. A morte da mãe com tinha uma relação profunda e de grande cumplicidade deixara-a profundamente ferida e abalada. Sabia que esse dia chegaria, mas nunca se está preparado, pensou.
A vida profissional e o contacto com os pacientes atenuava a ausência daquela mulher extraordinária que não estava mais ali para a apoiar.
Encontra a sua agenda aberta em cima da secretária. Não conhece o primeiro paciente e está curiosa. Bernardo Lemos chega à hora marcada. Senta-se no cadeirão à sua frente e olha-a fixamente; depois diz-lhe: “perdi um filho num desastre de automóvel e sinto-me a soçobrar.” Raquel sente os olhos cheios de lágrimas perante a confissão brutal e o rosto marcado pelo sofrimento. Sabe que tem que medir as palavras.

Nessa noite o rosto de Bernardo não lhe sai da cabeça. É invadida por um imenso sentimento de ternura. 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O ultimo café

Era tão delicada que o fez estremecer.  A voz suave daquela mulher era-lhe tão pouco habitual que virou a cara com medo de a enfrentar. Sentia-se incapaz de a olhar de frente, aliás não olhava ninguém de frente; fingia-se distraído, dizia qualquer coisa sem graça e saía de perto para não ser confrontado com uma pergunta directa.
Tinha horror à sinceridade e à espontaneidade. Disfarçava as suas fragilidades vestindo-se bem, sempre com as camisas impecavelmente passadas, as gravatas sóbrias e fato escuro de bom corte. Quem o via até era capaz de o achar “distinto”, quem o conhecia tinha-lhe asco. Não hesitava em inventar calúnias e a puxar o tapete aqueles que lhe faziam frente: Tortuosamente, insinuava, dizia que tinha ouvido, que tinha visto e minava a reputação e o trabalho dos outros.
O “chefe” achava-o imprescindível, competente e fiel. Fiel? Não, subserviente, sem coluna vertebral, um verme.
Sabia-se odiado, mas protegido pelo chefe mantinha um sorriso falso, às vezes o nervosismo fazia-o gaguejar. Nas costas os colegas imitavam-no e estalavam as gargalhadas. Adivinhava que se riam dele, mas sabia que se poderia vingar pela calada.
E agora aquela voz, não sabia o que fazer… há muito que ninguém lhe falara com gentileza, esquecera-se do significado da palavra.

Tinham passado vinte anos. José chegava ao fim de uma carreira sem brilho, gaguejava muito mais e o cabelo ralo dava-lhe um ar de cão rafeiro.
Naquele tempo em que o chefe o protegia, achava-se intocável e tivera a ilusão que poderia durar para sempre.
Depois houve a entrada da Drª. Bárbara para a chefia do departamento. Ficara deslumbrado e apaixonou-se perdidamente. Não ela. Inteligente, viva, intuitiva, feminina, Bárbara percebeu a paixão e usou-a. José passou a ser uma espécie de escravo, os relatórios mais enfadonhos, as tarefas mais burocráticas, eram da responsabilidade dele. Bastava-lhe falar na sua voz suave, um pouco rouca e passar os dedos pelo cabelo louro: “O José não se importa pois não?” E ele ficava no escritório, trabalhava horas e horas, só para ouvir: “Você é um querido, obrigada.” 
A atmosfera ficara menos tensa e mais arejada. Bárbara não permitia a intriga, as insinuações, cortava o mal pela raiz.
José reduziu-se à sua insignificância. Os anos passaram e hoje seria a última vez que ela lhe pediria na sua voz suave:  “Não se importa de me preparar o café?”



quinta-feira, 4 de junho de 2015

Caixa de madeira tosca



A caixa estava ali, em cima do banco, indefesa, sozinha. Alguém a esquecera. Vera aproxima-se fascinada, como que hipnotizada. Tem que chegar antes que alguém a veja; segura-a com ambas as mãos, a madeira está envelhecida, a pintura estragada. Talvez tivesse sido dourada em seu tempo. Um fecho e um pequeno cadeado. É leve, o que está dentro não tem peso. Aquela caixa só pode conter segredos.

Deseja chegar a casa e poder abri-la. Sim, são cartas que estão lá dentro. Há um leve cheiro a rosas, suave e feminino. É um pequeno maço de cartas, todas escritas pela mesma pessoa. Uma mulher perdidamente apaixonada. Vera sente-se a entrar na intimidade de dois seres que se amaram, mas que a vida separou cruelmente.

Há um envelope mais pesado, abre-o com cuidado. Lá dentro estão duas fotografias. Numa, o rosto de uma mulher nova de cabelo solto e um sorriso lindo, noutra a mesma mulher, agora de pé, à porta de uma casa. Atrás está escrito:
“Voltei à nossa “casa”, quis fixar a imagem para sempre”. A carta diz mais, muito mais, Vera tem dificuldade em acreditar:
“Pedro meu amor,
Foi aqui que nos amámos. Foi aqui que marcaste o meu destino para sempre. O filho que agora espero, terá o teu nome, é a única forma de assegurar que poderei expressar o meu amor, sem que ninguém perceba ou entenda. Poderei pronunciar o teu nome vezes sem conta, acariciar-te os cabelos, abraçar-te.”

Vera olha detalhadamente a fotografia, reconhece a casa, o alpendre, a varanda. A casa de Sintra onde a Avó Maria gostava de passar férias sozinha, e a verdade imensa, esmagadora, surge-lhe. As lágrimas correm soltas. Fecha a caixa e guarda-a em lugar seguro.
  
No dia seguinte na estação vê um pequeno anúncio:
“A quem achou um caixa de madeira tosca…”
Observa à sua volta e repara num velho senhor de cabelo branco que olha ansioso a multidão. Aproxima-se e pergunta-lhe:
- Perdeu alguma coisa?
Admirado o velho senhor de cabelo branco volta-se, tem uma expressão triste. Vera segura-lhe a mão e diz baixinho:
“Encontrei o seu tesouro, venha comigo.”


Não mexe uma palha

Faz um calor abrasador. Não mexe uma palha.
Uma miúda caminha sozinha pela berma da estrada, nas costas a mochila da escola, a cabeça protegida por um pequeno chapéu de palha. Tem ainda um quilómetro a percorrer até chegar à paragem do autocarro que passa de hora a hora.
Todos os dias a mesma rotina. São mais de vinte minutos a pé, de manhã e ao fim da tarde. Hoje está cansada; a paisagem é seca e desoladora, só uns miseráveis chaparros aqui e ali; gosta mais quando o trigo está crescido e dança ao vento. Mas agora nem vento há. O que lhe vale é gostar da escola, senão não vinha mais.
Os pais moram longe, lá no monte isolado, não sabem ler, nem escrever, mas mesmo assim apoiam a filha. É esperta, viva e gosta de aprender.
De repente sente um barulho de um motor, mas não é o autocarro;  é uma moto pequena que se aproxima e para junto dela.
“Não gosto disto”, pensa, Maria apressa o passo e ouve “Maria, eh Maria, sou o João da tua aula, não tenhas medo”.
Suspira de alívio e volta-se para se certificar que é mesmo o João.
“Que é que tu queres? Nunca passas por aqui…”
“É raro, mas vim ter contigo, com este calor tive medo que te sentisses mal. Vem Maria, dou-te boleia até casa, só te quero ajudar.”
Maria hesita, gosta do João, é bom rapaz mas mesmo assim…
“ Vem Maria, põe este capacete, levo-te a casa.”
E lá vai Maria, sentindo o vento quente na cara, nos braços, nas pernas. Nunca tinha andado de moto.
“É giro", pensa e agarra-se com força ao João que a deixa à porta de casa, afogueada, despenteada e feliz.
Nunca mais vai estar sozinha na paragem do autocarro.


terça-feira, 2 de junho de 2015

Vertigem

Deixou que ele entrasse na sua vida, abriu as portas à paixão e ao desejo. Não sabia, não queria saber se havia futuro. Só o presente contava no tumulto das emoções. Cada dia a aproximava mais do fim, e  o fim seria demasiado doloroso,
O passado esfumaçava-se na voragem do presente. Presente que se transformava em passado a cada minuto.
Tudo os separava e tudo parecia uni-los. A crueldade dos encontros desencontrados. O fim, a coragem para abrir a porta e dizer adeus.
Adeus ao presente e saber que o futuro acalmará o que não se quer acalmar, o que não se quer esquecer. Guardar na memória o perfume perturbador, silencioso, capaz de despertar emoções e sentir-se despedaçada pela ausência.
A porta está ainda aberta, as mãos agarradas mas os dedos soltam-se. "Não posso esquecer.-te. Foi tudo demasiado importante.". "Quero acreditar no destino.".
 Em silêncio ela olha o destino que agora se afasta...

"Adeus"

Sozinha em casa no silêncio e penumbra do anoitecer. O livro aberto à espera que ela lhe pegue, o acaricie e comece a ler. Faltam poucas páginas e isso entristece-a. Vai deixá-lo, separar-se dele, arrumá-lo na prateleira.
Sente um som leve no vidro da janela. Levanta os olhos distraída. Não está ninguém. "Estranho", pensa e ouve de novo o tamborilar dos dedos...leve quase inaudível.
Ninguém...e ainda outra vez o barulho leve e insistente. Abre a janela, do outro lado nem sombra.
Percebe então que era a personagem do livro a dizer-lhe "adeus".

domingo, 31 de maio de 2015

À procura de um título...

Continuar a ser diferente, inventar personagens como Pessoa. Misturar todas, dar-lhes vida e sem remorsos deixá-las livres de cometerem todos os pecados. Contar uma história, parar no momento oportuno e depois recomeçar, recomeçar sempre, esse era o segredo.
O caminho era cheio de curvas, não era possível relembrar tudo, nem mesmo quando encostava a memória ao passado. Perdera a esperança de apaziguar as emoções, os sentimentos; impossível pôr ordem na sua história de vida. Precisava de destrinçar os vários capítulos que se entrelaçavam uns nos outros, onde se perdiam e encontravam, amizades, amores, ódios e paixões.

Queria seguir em frente, por um corredor que não fosse labiríntico, esperando encontrar no fim do percurso uns braços abertos prontos a abraçá-la. Sentar-se por fim na areia e contemplar o horizonte finito e infinito onde o seu espírito se podia perder. E depois dar a mão a alguém e repousar a cabeça no seu ombro. 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Queimei-te também

Foi um dia estafante. A agenda sem um único espaço livre; os doentes mais doentes do que o habitual. “É a crise com certeza”, pensou…” "as pessoas estão a ficar mais malucas, desatinadas, sem saber para onde vão, é terrível a desesperança” e “este país é mínimo, um pobre rectângulo, com o mar de um lado e a Espanha do outro. Estou cansado, farto.”
Caminha a passos largos pela avenida. O ar está frio, mas o céu limpo sem uma nuvem. Respira fundo, dentro de pouco tempo estará em casa. Apressa-se, precisa do seu refúgio, do sofá de pele, da música baixa, do whisky sempre da mesma marca.
Abre a porta do apartamento, o cão não vem ao seu encontro, chama-o “Pepsi, Pepsi”, mas não há Pepsi, sente um sobressalto, “alguma coisa aconteceu” pensa. Olha em frente, a porta do escritório está entreaberta, empurra-a com força e pára estupefacto. Vazio, completamente vazio, nada, não há nada, só um envelope branco no chão. Abre-o com medo, reconhece de imediato a letra…e lê.

“Julgavas então que estava tudo acabado. Que cada um ia para seu lado, muito bem-educados e resignados. Não me conhecias e assim descobres com surpresa, penso, a mulher que tinhas a teu lado.

Levei tudo e a esta hora estará tudo queimado. Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros. Desapareceste tu. Por mim estou aliviada. Queimei-te também”.

terça-feira, 24 de março de 2015

Homens de fala áspera

O comboio passava três vezes. Ouvia-se à distância. Ela contava sempre. Era o último. Saiam como que esquecidos de tudo. Um rebanho paciente cuja vida pouco lhes dera. Vinham de sítios diferentes, mundos que não eram novos. Só diferentes. Muitas vezes procuravam um olhar, talvez um ombro que os consolasse.
Ela procura reter as expressões, ouvir as frases. A fala era áspera. Muitos aconselhavam a não se meter, mas ela precisava entender. Os homens de fala áspera. Tristes como se a vida os atrapalhasse. Mas nada acontecia. Viravam a esquina como se nós não existíssemos.

Nunca falaram connosco e ela nunca os esqueceu.

"Já não dá ...desculpe"


Sabe que não tem muito tempo, mas não se atreve a olhar para o relógio, prefere pensar que o que lhe resta é dela e só dela; do outro lado está ele, separados por uma barreira de vidro, onde por um pequeno orifício podem proferir algumas palavras. “Não chores, tudo vai passar…”
Ela tenta sorrir, dizer-lhe que o amará para sempre, que nada os separará. Mas a voz fica embargada na garganta, e agora soluça convulsivamente. O rosto dele está transtornado pela dor e pela comoção. Consegue ainda esboçar um gesto como se lhe acariciasse os cabelos.
Ouve-se uma sirene, acabou o tempo; ela não consegue levantar-se; ele olha-a, procura um sorriso, uma luz.
Alguém aproxima-se e diz:

“- Já não dá…desculpe.”                         

sexta-feira, 20 de março de 2015

Intolerância, Posse ...Amor?

Tinham-me dito que ele era teimoso que nem um burro, mas que era muito inteligente.
Pensei:  “Não é possível, ou o homem é teimoso e burro, e pronto é uma chatice ter que o aturar, ou o homem é inteligente e vai ser capaz de entender a minha argumentação; claro que tenho que ir bem preparada, parece-me evidente que ele não quer ceder a ninguém, e portanto criou uma barreira à sua volta para não se deixar influenciar.
A tarefa não seria fácil, o assunto era delicado, deixar que a única filha, seguisse a carreira teatral, mas contrariar aquele imenso talento era uma forma de castração e violência, palavras que não poderia usar nunca.
Entrei na sala sem medo.  Olhou-me com altivez e soltou um “sente-se se faz favor. Sei ao que vem, diga-me o que tem a dizer, não tenho tempo a perder.”
“ Não quero que perca tempo, ao  contrário gostaria que ganhasse tempo. De reflexão e de sensibilidade. Ama  a sua filha e tenho a certeza que quer o que pensa ser o melhor para ela…mas o melhor para os nossos filhos não é prendê-los com uma  corrente, como se fossem propriedade nossa e impedi-los de voar.”
“Eu sei o que é melhor para ela.”
“Não, desculpe sabe o que é melhor para si, não para ela.”
“Não quero que ela sofra.”
“Nenhum pai quer que os filhos sofram, mas quer maior sofrimento que matar os sonhos, o talento, impedir o voo livre de alguém que tem o talento  da sua filha. Já pensou como aquilo a que chama amor pode ser sinónimo de posse e crueldade?”
Olhou-me surpreso…“Explique-se um pouco melhor se não se importa".

quinta-feira, 12 de março de 2015

Guerra

Luísa aperta a carta contra o peito. Há dois meses que espera notícias de Miguel.
Sabia que ele não lhe escreveria com frequência. Partira numa missão altamente perigosa e secreta. Telefonemas e emails estavam fora de questão, poderiam constituir pistas.
Luísa senta-se, abre o envelope com cuidado, desdobra a folha de papel branco e olha sôfrega a letra inconfundível de Miguel.

“Meu amor,
Sei que estás impaciente e reconheço como deve ser difícil a minha ausência e o meu silêncio. Conheces as razões. Mas o meu corpo, o meu espírito estão impregnados de ti. Às vezes parece que sinto o teu perfume e que acaricio a tua pele macia. Depois acordo sobressaltado.
Não sei quando voltarei a escrever-te, é tudo muito complicado, mas agarro-me à certeza que nada, nem ninguém nos separará.
Amo-te e podia repetir amo-te, amo-te, amo-te, até à exaustão.”

Luísa respira fundo, limpa as lágrimas que não consegue reter.
“Miguel quando voltas meu amor, minha paixão, minha vida…”
Os meses passam sem notícias, sem cartas, o vazio total.


Um dia a campainha toca, tem a certeza, é o Miguel, corre doida até à porta. Abre-a de rompante. Sim é o Miguel, sentado numa cadeira de rodas.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Fiel e Fugidia ...Felicidade



Se pensarmos, se quisermos ser racionais, sérios, adultos, chegamos à conclusão que temos razões para nos sentirmos felizes.
O mal é querer que a felicidade seja duradoura como se fosse um bem adquirido. A felicidade é feita de momentos, de retalhos, às vezes de migalhas. Somos ambiciosos  e desprezamos os sinais, mesmo pequenos, que ela está ali, ao nosso lado, à nossa espera.
Hoje repito a frase dita por um amigo:  “Le malheur de t’avoir perdu, le bonheur de t’avoir connu”. A felicidade de ter conhecido a felicidade, só nos pode dar a certeza que podemos agarrar na nossa memória o sentimento, a emoção e reencontrá-la.
Às vezes passam tempos em que temos a sensação que ela fugiu e que não a recuperaremos nunca mais e penso, sem poder pensar, sem poder imaginar, sem poder sentir, achando quase um sacrilégio poder pensar, naqueles que há setenta anos viram abrir-se as portas de Auswich, de Dachau, aqueles que sobreviveram, aqueles que um dia voltaram a sorrir…

É preciso tornar a felicidade mais próxima, relembrar, reconstruir. Apagar, sim apagar muita coisa, mas agarrar um sorriso, um raio de luz, uma flor que se abre, um pingo de chuva. Agarrar a vida, e sublinhar todos os dias, os momentos, os segundos em que ela estava ali. Fiel e fugidia.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

*“A felicidade não é um estado perene..."



Querias saber se eu era feliz…perguntaste-me com insistência: “Diz-me foste feliz?”
“Feliz… sim, fui, ainda sou e talvez possa continuar a ser, mas a felicidade não é um estado perene, estável…um dado adquirido; a felicidade é desigual, injusta e fugitiva.”
“Injusta, dizes…”
“Sim tu achas que uns merecem ser felizes e outros não? A felicidade conquista-se?” Perguntas.
“Não, constrói-se, desconstruindo. Precisas de te habituar a esquecer e perdoar, tenta voltar a ser criança e talvez voltar a sorrir. Vês, esboçaste um sorriso, já é um começo “
“Mas quando ele se foi embora sofreste que nem uma condenada.”
…”Sim, condenada a esquecer, a apagar as emoções, os sonhos, as recordações, mas queimei tudo, lembraste? E escrevi-lhe:
“Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros, desapareceste tu”.
“Foi brutal, mas libertei-me, as cinzas são levadas pelo vento, o chão fica limpo outra vez e consegui caminhar à procura da luz e algo a que pudesse voltar a chamar de felicidade. Encontrei, nada foi em vão.”

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Sabemos tão pouco...


As janelas da biblioteca estão abertas de par em par. Os raios de sol iluminam as prateleiras viradas a nascente; o resto permanece ainda na penumbra do amanhecer.
Magnifica colecção de livros que a família adquiriu ao longo dos últimos duzentos anos. Homens notáveis tinham ido ali procurar edições raras e beneficiar da paz e silêncio para reflectir, ler e escrever. Era uma atmosfera quase religiosa, um lugar onde o passado se entranhava no presente e se projectava no futuro. A calma era total, só a brisa leve da Primavera agitava as folhas dos plátanos e o cheiro da madressilva perfumava o ar.
Martim é o neto mais novo e também o mais intelectual; a biblioteca é o seu mundo, passa horas folheando livros, tomando notas. Tinha agora a responsabilidade da reorganização de toda a literatura do século XIX e XX. Quer tornar aquele espaço público, deixar que outros possam encontrar ali a resposta a dúvidas e a inspiração para novos projectos. Naquela manhã sente-se renovado, a Primavera deixa-o estimulado, possuído por uma nova energia.
Entra decidido a encontrar um livro raro de poesia, escrito por um famoso poeta da época e ilustrado pela sua avó. Não a conhecera, mas sabia que era dotada de uma rara sensibilidade e uma enorme independência de espírito. O avô nunca falava dela, Marim achava estranho mas não fazia perguntas.

Os livros de poesia estão nas prateleiras de cima e de difícil acesso; empurra o pequeno escadote e começa a procurar. Sim, é aquele mesmo, na capa o desenho de um pássaro. Abre-o curioso e ansioso como se estivesse a entrar na intimidade de alguém, folheia-o, duas rosas secas estão coladas às primeiras páginas. Começa a ler e não quer acreditar; são poemas de amor intenso, liberto, quase libertino, dedicados a Vitória…sua avó.

Caminho para a luz...considerações



O caminho não me oferece dúvidas, para melhor percorrê-lo procurei-a sempre. Sim, a luz que me desviasse da escuridão mesmo quando era mais fácil…e só o amor à vida me salvou sempre.
Sei que me resta pouco tempo, mas não tenho medo a sombra não conseguirá extinguir a luz.

Caminho para a luz, mesmo quando só me resta a sombra.
Ser o eixo, o pilar, a sustentação daquilo que acredito

A serenidade que vem com o tempo, é o prémio da vida.