terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sonata de Chopin



Francisco estranhou quando o telefone tocou aquela hora. Não era habitual em Vitória. A voz estava diferente do outro lado da linha. Fria e incisiva, cortante. A voz de quem dá uma ordem.
Os dias ainda estavam longos e a estrada livre. Chegaria a tempo. Vitória detestava esperar.
Francisco sentou-se na sua poltrona preferida, perto da janela e junto à lareira que Vitória não acendera. Aguentava mal o silêncio, pesava-lhe e não conseguia disfarçar o nervosismo que sentia.
Não se ouvia a música preferida de ambos. Maria João Pires não tocaria Chopin nessa tarde de Outono.
Vitória continuava silenciosa. Francisco sabia que o jogo da sedução e paixão não teria mais lugar. Sentiam que aquele encontro seria decisivo; Vitória recusava continuar a viver na mentira e na hipocrisia, pedia uma definição.
Os dois enfrentavam-se; o tom de voz subia, e a verdade, aquela verdade que se diz nos momentos de desespero vinha ao de cima.
Vitória olhou para ele com raiva. Toda a frustração, desespero, angustia, que sentira nesse ultimo ano, estava expressa naquele olhar.
Francisco dirigiu-se para a porta de entrada. Abriu-a com violência e saiu sem olhar para trás.

HB

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Despertador indiscreto


Já toquei. Cumpri o meu dever. Sei que sou estridente e intrometido mas se não for assim ela adormece novamente.
Gosto de a observar quando se espreguiça na cama, os olhos quase fechados. Primeiro estica as pernas, depois os braços. No Verão ela está linda, quase nua e eu, mudo, a olhar para aquele corpo jovem e elástico que eu conheço há alguns anos.
Sou um privilegiado e não me queixo da vida. Depois ela põe a música a tocar. Conheço-lhe os gostos: se tem alguma reunião importante lá vem a música clássica, Beethoven ou Chopin, às vezes Mozart. Levanta-se séria, decidida e lá vai para debaixo do duche onde fica horas. A música continua a tocar até ela estar pronta.
A mim também me desliga não vá eu começar a tocar fora de propósito. Aconteceu uma vez, mas essa não posso contar porque é muito intima e eu prometi a mim próprio que não dizia a ninguém. O que eu mais gosto é quando ela se ri e solta uma daquelas gargalhadas irresistíveis. Acontece muitas vezes quando telefona o Edward, que eu não conheço mas de quem tenho ciúmes. A esse se pudesse despertava-o às cinco da manhã só para me vingar.
Tenho uma vida calma, rotineira, mas em paz comigo próprio. Cumpro o meu dever e gosto muito, mesmo muito da minha dona.


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Mar, não sabia que corrias nas minhas veias


Nunca até então vivera longe do mar. Sempre de uma forma ou de outra o mar estava próximo.
Lisboa abre-se despudorada ao rio e ao oceano. Do mar chegavam os que a aventura, a profissão, a família, levara até terras longínquas. Iam e voltavam… algumas vezes ficavam e não voltavam mais.
O cais era sempre o lugar da tristeza e da alegria, das lágrimas e dos risos, abraços, dos lenços brancos até não se saber mais a quem se dizia adeus.
O mar era também a liberdade das férias, o mergulhar nas ondas, enfrentá-lo um desafio constante.
E agora o mar não estava, e sua ausência era sentida com profunda dor.



Liberdade

Era um sonho, uma obsessão conquistar a liberdade. Decidir por ela em plena consciência e com a maturidade possível, ir até onde a imaginação a levasse. Saber que o espaço da vida lhe pertencia quase na totalidade. Caminhar a céu aberto, sem se importar de cair, de se magoar, levantar-se, sacudir o pó e continuar mesmo com dor.
As barreiras tinham ficado para trás, atravessá-las deixara cicatrizes indeléveis, de tempos a tempos passava a mão pela alma para senti-las e não mais as esquecer. Elas eram a marca do caminho já percorrido e da chegada ao “point of no return”.
A sensação de vertigem e o medo de perder o equilíbrio assaltavam-na, mas era nesses momentos que agarrava a liberdade com as mãos tornando-a prisioneira do seu sonho.


HB

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Montanha russa e uma ex ciumenta...

O que era aquele sentimento? De repente era nele que pensava, era com ele que queria estar… um novo amor?
Não tinha ainda a certeza, mas gostava do que sentia. Não esperava um novo amor, não sabia se queria, mas não punha barreiras, não sentia medo… um pouco como quando ainda criança andava na montanha russa; um frio na barriga, um arrepio e depois a sensação inebriante da queda e da subida outra vez.
Um novo amor comparável a uma montanha russa?  Riu-se às gargalhadas, adorou a comparação. Afinal o que era a sensação de um novo amor, senão uma espécie de bebedeira, de uma aventura mágica, sem fim previsível. Para quê ter medo, o medo é impeditivo, arrepender-se talvez, mas a vida é feita de muitos arrependimentos.
O dia fora passado na praia, quase deserta naquela altura do ano, o mar estava calmo. Andaram de barco, cortando as pequenas ondas, deixando que o sal e o vento os deixassem estonteados e cansados. Deram as mãos, ambos sabiam que abriam um novo capítulo.
Depois os dias passaram e houve aquele almoço, incómodo, inesperado, indigesto. Ela, Ele e a EX. A ex ainda possessiva, com passado à superfície:  “Lembras-te, “Sim tu gostavas”, Quando estivemos em Itália”…

Chegou a casa tonta, os sentimentos todos numa confusão, e o telefone tocou, ele claro, “Sei como te sentes, mas o passado vai estar sempre connosco, o teu e o meu. Agora vivamos o presente para que possamos amanhã saber que temos um passado que é nosso, só nosso.”

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A linha do horizonte


Era um sentimento estranho e diferente que a invadia. Uma imensa nostalgia, e a certeza clara e dura, que havia coisas perdidas para sempre. Mas havia outras que queria ainda fazer, que deviam ser feitas, não se perdoaria deixá-las ao acaso.
Passa os dedos pelos cabelos, está só mas a solidão não lhe pesa, dentro de si as recordações dançam como se de um bailado se tratasse.
Olha pela janela, o sol põe-se no horizonte.


Partir para longe dissera ele. “Quero ir para onde ninguém me conheça, esquecer que te amei e recomeçar de novo.”
Ela calou-se, não respondeu; achava tudo aquilo um disparate, como se fosse possível não arrastar consigo o passado, a memória, os risos e as lágrimas.
“Não dizes nada…”
“Vai, vai para longe, não te libertarás nunca de mim. É a única coisa que eu sei.
Ele olhou-a espantado e saiu deixando a porta aberta.


O tempo um dia achamos que o temos todo. Sem darmos por isso chegamos a meio e depois inexoravelmente o tempo ficou tão curto que nos surpreende.

O tempo… estranha noção.

Garrafas com areias coloridas



Olhava para o rapaz que não teria mais que doze anos franzinos e tristes. No entanto a paciência que demonstrava ao deitar cuidadosamente areias coloridas para dentro da garrafa, demonstrava uma imensa dose de persistência e mestria.
Levantou os olhos e perguntou:
“A senhora quer aprender?”
“Não, não, só te quero ver trabalhar e admiro a tua paciência.”
“Gosto, disse ele, “aprendi com o meu pai, que já tinha aprendido com o meu avô, mas o melhor de todos é o meu pai. Está horas e horas a escolher as cores e os bonecos que vai ser capaz de construir. Amanhã eu trago para a senhora ver uma garrafa que foi premiada. Ele tem uma medalha que está pendurada em cima da cama. Diz que lhe dá sorte e paciência.”
“E tu herdaste o talento do teu pai, pelos vistos!”
“Tomara…mas ainda vou precisar treinar muito.”
“Tens a vida à tua frente, e paciência não te falta.”
Sentei-me e olhei o mar e a areia da praia, branca e fina. Seria completamente incapaz de encher com areias coloridas fosse o que fosse. Iria misturar tudo, estabelecer o caos, sem forma, sem sentido. As areias não seriam nunca matéria que eu pudesse moldar. As palavras, as letras sim. Esculpir palavras, frases, alisar arestas, libertá-las de ornamentos supérfluos, tirar vírgulas, pôr pontos.

Sim era essa a minha garrafa de areias coloridas, presas por mim numa página que deixou de estar vazia e que pintei ao sabor da minha imaginação.