Não sei por que razão me veio à
memória a D. Alice costureira. Recordava a minha infância e a D. Alice apareceu
com certeza associada às tardes que a minha mãe me obrigava a passar na casa
das tias e primas e que representavam para mim uma espécie de tortura lenta, um
tédio que doía, uma sensação de enjoo e ao mesmo tempo uma promessa que eu
fazia no mais íntimo de mim própria e que era, nunca, mas nunca, quando
crescesse ser parecida com aquelas mulheres sem idade, que eu abominava. Penso
que a minha mãe, aliás novíssima, deveria ter nessa altura uns vinte e quatro
anos, quis, desde muito cedo, meter-me na
cabeça que uma mulher nascera para ter uma vida enfadonha, monótona, cheia de
tarefas imbecis, como cozer bainhas, pregar botões e fazer de conta que sabia
bordar.
As tardes em casa da tia Florinda
e da prima Alda eram sufocantes; obrigavam-me a ficar sentada numa cadeira
baixa e tentavam ensinar-me a fazer ponto pé de flor…a única coisa agradável
era a hora do chá. O marido da tia Florinda, o Sr. Salvador era dono da
Pastelaria Versailles e o lanche era óptimo, pelo menos eu achava óptimo, muito
embora estivéssemos em plena II Guerra
Mundial e haver escassez de tudo e os géneros serem de péssima qualidade; mas havia
um mercado negro florescente e tenho a certeza que o Sr. Salvador, não hesitava
comprar no “paralelo”, para melhor servir os seus clientes.
Durante anos ninguém me convenceu
a fazer uma bainha ou pregar um botão, o que deve ter contribuído em parte para
o meu divórcio.
Mas voltemos à D. Alice; a D.
Alice era a costureira lá de casa. Media menos de um metro e meio, era embirrenta, não bebia água e era casada com o Sr. Álvaro, embarcadiço que
passava longos períodos fora.
Dois ou três dias por semana a D.
Alice vinha trabalhar para nós: até aos meus onze anos tudo o que eu vestia,
era “home made” pela D. Alice, e também tudo o que era preciso cozer, emendar,
remendar, era da sua responsabilidade. À distância tenho a certeza que os meus
vestidos eram feiíssimos, porque a D. Alice que era toda cuidadosa com os
chamados acabamentos, não percebia nada de corte. Os vestidos eram escolhidos
pela minha mãe e uma vez cortados e alinhavados tinham que ser provados. As
provas eram em simultâneo um massacre e uma comédia; eu aproveitava para
demonstrar a minha insubordinação às regras, pondo-me toda torta, sentando-me,
ajoelhando-me, fugindo; pelo meio apanhava alguns tabefes da minha mãe e a D.
Alice aproveitava para me dar alguma alfinetada, fingindo ser sem querer, o que
provocava uma gritaria.
A D. Alice almoçava connosco à
mesa, e essa era a hora ideal para eu me vingar. A presença do meu pai, que me
achava a maior das graças, permitia-me algumas maldades, e eu sabendo da
aversão que ela tinha à água, insistia para que ela bebesse e explicava que com
certeza a razão de ela ser tão baixinha, se devia ao facto de nunca beber água
e se as plantas precisavam de ser regadas para crescer, a explicação para a sua
baixa estatura estava aí, falta de rega. A D. Alice ficava furibunda, olhava
para mim com raiva e lá por dentro prometia-me uma alfinetada na primeira
oportunidade.
E na minha cabeça iam ficando
expressões como alinhavar, viés, cortar pelo fio, ajour, rematar, godés.
A D. Alice esteve connosco anos
sem conta, fez os meus vestidos, os da minha irmã e mais tarde a roupa dos meus
filhos, que lhe fizeram mil partidas que devem ter contribuído para apressar o
seu fim; manteve-se embirrenta, baixinha obviamente e sem qualquer
sentido de humor.
Mas a vida dá muitas voltas, e mal
sabia a D. Alice que no dia em que resolvi ajudar a minha filha a decorar a casa,
me vi a cortar tecidos pelo fio, a fazer enviesados, a rematar e alinhavar, a
carregar no pedal e cozer à maquina, a fazer bainhas e franzidos e quando a
minha filha absolutamente banzada com as minhas novas capacidades, me perguntou
onde é que eu tinha aprendido a costurar, a minha resposta foi: “de ouvido com
a D. Alice”. Finalmente a D. Alice vingara-se, silenciosamente, insidiosamente,
ela tinha-me ensinado a pegar na agulha, a alinhavar, a cortar um tecido, e a
ser, durante um período curto é verdade, uma dona de casa prendada!
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