quinta-feira, 27 de abril de 2017

7h55 da manhã -25 de Abril 1974



Bom,vamos lá para trás, só quarenta e três anos:
Lembro a nossa rotina, o duche, o pequeno-almoço tomado à pressa, a rádio ligada…nessa manhã não ouvimos os 5 minutos de ginástica do capitão, devia estar doente pensei, o homem nunca falhava, mas a hora não mudara, faltavam cinco minutos para as oito e a Teresa tinha que estar no liceu às oito e meia.
- Teresinha vamos, despache-se está na hora.
- Oh mãe vou já, estou a fechar a pasta.
Descemos a escada a correr, cinco andares sem elevador, só possíveis quarenta e três anos atrás. Enfiámos-nos no carro, o célebre Renault amarelo que toda a gente reconhecia. Pouco transito nessa manhã, muito pouco mesmo.
Chegámos ao Maria Amália mais que a tempo. Demos a volta ao edifício e com espanto vimos vários soldados em cima do muro…não percebi nada, e mais à frente mais soldados no outro muro. Parei o carro:
- Oh Teresinha vá lá ver o que se passa.
Lá sai a minha filha toda lépida, e volta a correr para o carro.
- Então o que foi?
- Oh mãe um golpe de estado, uma operação militar!
- Um golpe de estado? Ah vamos ver!
E lá fomos as duas no veículo amarelo gema, pelas ruas de Lisboa… mais à frente não se podia passar, voltámos, chegámos à Assembleia, ligámos a telefonia e ouvimos:
“Grândola vila morena…”
Foi há quarente e três anos atrás!

segunda-feira, 27 de março de 2017

Uma teia de aranha no sótão



No sótão estou eu e tudo aquilo que fui e sou. Já há algum tempo que o tema me persegue, a certeza absoluta que só sei o que possuo, o que ninguém me pode tirar, o que permanecerá em mim até ao fim, é o meu passado.
Não é pesado, mas já é longo, uma espécie de teia de aranha de fios finos mas todos parte de mim. Chega a ser engraçado olhar para a teia, tecida com todo o cuidado e saber que tudo aquilo faz parte de um percurso não linear, não transparente, mas que consigo decifrar quando procuro um dado, um capítulo esquecido … enigmática a teia de aranha? Talvez, mas só para aqueles que procuraram um caminho sem curvas, nem contra curvas, plano, previsível. Enquanto isso eu ia tecendo e a teia ganhava força, e os fios brilhavam, e alguns insectos ficavam presos no entrelaçado.

A minha teia de aranha tenho ainda que cuidar dela, não vou deixar que ninguém se atreva a apagá-la. No dia em que desaparecer, desapareço eu também, porque eu sou a teia e a teia sou eu.

domingo, 26 de março de 2017

O vento está cansado...


Ali estava a nuvem negra, imensa, olhando para mim, perscrutando o meu íntimo, ameaçando-me.
O vento recolhera-se por trás das árvores seculares. Estava cansado, o vento, já não tinha forças para assustar ninguém. Cansara-se de afogar barcos, revolver o mar, matar árvores frágeis que se dobravam à sua passagem. O vento queria paz, queria não ter voz e que tudo se remetesse ao silêncio mesmo correndo o risco de ser ensurdecedor. O silêncio amordaçado, pronto a rebentar numa tempestade desfeita onde os relâmpagos pareciam fogo-de-artifício.

Senti-me esmagada pela ameaça daquela nuvem intimidadora  lembrando-me que tudo tinha um fim e que a linha do horizonte não era uma miragem, mas sim uma fronteira pela qual eu passaria transformada numa nuvem branca atravessada pelos raios do sol que mergulhava no mar.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Linhas, agulhas e ponto pé-de-flor...




Não sei por que razão me veio à memória a D. Alice costureira. Recordava a minha infância e a D. Alice apareceu com certeza associada às tardes que a minha mãe me obrigava a passar na casa das tias e primas e que representavam para mim uma espécie de tortura lenta, um tédio que doía, uma sensação de enjoo e ao mesmo tempo uma promessa que eu fazia no mais íntimo de mim própria e que era, nunca, mas nunca, quando crescesse ser parecida com aquelas mulheres sem idade, que eu abominava. Penso que a minha mãe, aliás novíssima, deveria ter nessa altura uns vinte e quatro anos, quis, desde muito cedo, meter-me na cabeça que uma mulher nascera para ter uma vida enfadonha, monótona, cheia de tarefas imbecis, como cozer bainhas, pregar botões e fazer de conta que sabia bordar.
As tardes em casa da tia Florinda e da prima Alda eram sufocantes; obrigavam-me a ficar sentada numa cadeira baixa e tentavam ensinar-me a fazer ponto pé de flor…a única coisa agradável era a hora do chá. O marido da tia Florinda, o Sr. Salvador era dono da Pastelaria Versailles e o lanche era óptimo, pelo menos eu achava óptimo, muito embora estivéssemos em plena II Guerra Mundial e haver escassez de tudo e os géneros serem de péssima qualidade; mas havia um mercado negro florescente e tenho a certeza que o Sr. Salvador, não hesitava comprar no “paralelo”, para melhor servir os seus clientes.
Durante anos ninguém me convenceu a fazer uma bainha ou pregar um botão, o que deve ter contribuído em parte para o meu divórcio.
Mas voltemos à D. Alice; a D. Alice era a costureira lá de casa. Media menos de um metro e meio, era embirrenta, não bebia água e era casada com o Sr. Álvaro, embarcadiço que passava longos períodos fora.
Dois ou três dias por semana a D. Alice vinha trabalhar para nós: até aos meus onze anos tudo o que eu vestia, era “home made” pela D. Alice, e também tudo o que era preciso cozer, emendar, remendar, era da sua responsabilidade. À distância tenho a certeza que os meus vestidos eram feiíssimos, porque a D. Alice que era toda cuidadosa com os chamados acabamentos, não percebia nada de corte. Os vestidos eram escolhidos pela minha mãe e uma vez cortados e alinhavados tinham que ser provados. As provas eram em simultâneo um massacre e uma comédia; eu aproveitava para demonstrar a minha insubordinação às regras, pondo-me toda torta, sentando-me, ajoelhando-me, fugindo; pelo meio apanhava alguns tabefes da minha mãe e a D. Alice aproveitava para me dar alguma alfinetada, fingindo ser sem querer, o que provocava uma gritaria.
A D. Alice almoçava connosco à mesa, e essa era a hora ideal para eu me vingar. A presença do meu pai, que me achava a maior das graças, permitia-me algumas maldades, e eu sabendo da aversão que ela tinha à água, insistia para que ela bebesse e explicava que com certeza a razão de ela ser tão baixinha, se devia ao facto de nunca beber água e se as plantas precisavam de ser regadas para crescer, a explicação para a sua baixa estatura estava aí, falta de rega. A D. Alice ficava furibunda, olhava para mim com raiva e lá por dentro prometia-me uma alfinetada na primeira oportunidade.
E na minha cabeça iam ficando expressões como alinhavar, viés, cortar pelo fio, ajour, rematar, godés.
  
 O Sr. Álvaro, marido embarcadiço, voltava com a regularidade que as suas viagens permitiam e nos períodos em que estava em terra a D. Alice rejubilava. Não tinham filhos, o que não parecia incomodá-los e percebi mais tarde que o metro e quarenta e poucos da D. Alice não a impedia de desfrutar dos prazeres da carne. O que não sei porquê, era mais um motivo de risota para nós.
A D. Alice esteve connosco anos sem conta, fez os meus vestidos, os da minha irmã e mais tarde a roupa dos meus filhos, que lhe fizeram mil partidas que devem ter contribuído para apressar o seu fim; manteve-se embirrenta, baixinha obviamente e sem qualquer sentido de humor.

Mas a vida dá muitas voltas, e mal sabia a D. Alice que no dia em que resolvi ajudar a minha filha a decorar a casa, me vi a cortar tecidos pelo fio, a fazer enviesados, a rematar e alinhavar, a carregar no pedal e cozer à maquina, a fazer bainhas e franzidos e quando a minha filha absolutamente banzada com as minhas novas capacidades, me perguntou onde é que eu tinha aprendido a costurar, a minha resposta foi: “de ouvido com a D. Alice”. Finalmente a D. Alice vingara-se, silenciosamente, insidiosamente, ela tinha-me ensinado a pegar na agulha, a alinhavar, a cortar um tecido, e a ser, durante um período curto é verdade, uma dona de casa prendada!



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Ao escritor António Lobo Antunes



Afasto-me um pouco, paro de ler, pouso o livro / a revista sobre a mesa. Sinto-me emocionada de uma forma profunda e indelével, talvez venha a esquecer o texto mas não o que ele causou em mim. Não há uma palavra a mais, não há uma palavra a menos. Não há excessos porque não é preciso, um equilíbrio total entre as palavras e as emoções, como uma peça musical, uma sonata não sei.
Só sei que se estivesse no teatro me teria levantado e batido palmas até à exaustão e gritaria bravo, bravo, e num concerto não arredaria pé sem que houvesse um extra ou mesmo dois… aqui sou eu e a página escrita, sós, um exercício solitário que não chega ao escritor que de certa forma não tem direito a palmas nem a bravos.
Há meses que António Lobo Antunes me deslumbra, me comove, me emociona, me faz sorrir, com as suas crónicas, quase confidências, onde se despede, como se pudesse ser ouvido, dos muitos que amou e que já partiram. É como se estivesse a dizer, enquanto estou aqui, enquanto houver quem me leia, quero que saibam como vos amei, mesmo quando os odiava, mesmo quando estava zangado, como sou aquilo que vocês foram e que me impregnou, numa espécie de osmose indetectável.
Quem o conhece sabe que tem mau feitio, que não suporta a mediocridade, que pode ser desagradável … mas na realidade que importância tem isso quando alguém escreve como António Lobo Antunes? O que ficará será a sua escrita, serão as suas sonatas em forma de palavras ou talvez notas musicais que se transformaram em letras, porque existe um ritmo, um equilíbrio, uma sonoridade que nos permite ouvir atentos o que está a tocar.

Obrigada e a palavra é tão limitativa, mas não conheço outra, obrigada.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Angústia



 Nesse dia com uma expressão ansiosa que não lhe conhecia, segurou-me na mão e em voz baixa, pediu-me “Help me, help me please!”
Mantive-me calada, a segurá-lo junto a mim ou talvez a tentar protegê-lo do que aí vinha. Eu sabia, sabia já há alguns meses que nada poderia ser feito, que nada já resultaria, só nos restava esperar o fim. Entre o fim e aquele dia, havia ainda a vida que se esgueirava, que fugia, mas aquela que teimava em restar era preciso dar-lhe cor, preenchê-la com sorrisos, com um abraço terno, uma palavra de esperança, uma escolha sensível de todos os detalhes, para que tudo parecesse igual, para que nada parecesse ameaçado.
Pouco tempo depois já no hospital foram as enfermeiras a quem chamei de mães que, com os olhos cheios de lágrimas me agradeceram a confiança e como a palavra mãe lhes tinha dado forças para continuarem, para enfrentar o fim e a dor, mesmo que a dor não fosse a delas, ou não seria também…porque a abnegação, a entrega, a devoção que demonstraram a todos os minutos só as mães verdadeiras são capazes.
Obrigada!


Mermória



... Porque a memória traz de volta o que queremos e também o que não queremos…
A memória é o arquivo do meu passado, estão lá quase intactos, capítulos que tinha esquecido e que se soltam vibrantes de vida.
Mas a minha memória é selectiva, sabe que não gosto da escuridão e portanto traz luz para o meu presente. Deixa de lado o que ficou na penumbra, o erro cometido, a escolha errada. Sei que não os esconde mas não procura dar-lhes evidência ou torná-los demasiado presentes.
As dores, as lágrimas, as ausências, as perdas caminham paralelas mas não interferem com a esperança, com a vontade de viver, com a capacidade de me renovar e renascer. Até quando? Até quando?
A pergunta surge, às vezes perturba-me, outras vezes inquieta-me, mas empurro-a suavemente para que não ocupe demasiado espaço. É tão melhor sentir o calor do sol na minha pele e ouvir a música que ainda me estimula, que ainda faz com que o meu corpo acorde… e nessa altura as saudades imensas do Brian entram de rompão, e vem o desejo de sentir novamente o ritmo, a cumplicidade, a entrega, os corpos que se conhecem, que se enlaçam, que se desejam, como se um fosse parte do outro, sem medo, sem receio, em total confiança.

Que saudades "my Darling"!