sábado, 1 de novembro de 2014

A carta aberta...


Estivera a arranjar as gavetas da secretária. Mantinha, arrumadas por ordem de datas todas as cartas que ele lhe escrevera durante os anos que durara aquela paixão avassaladora. Não as abria nunca, pegava no molho, acariciava-as com os dedos e voltava a pô-las no lugar.
Nesse dia não resistiu, tirou com cuidado duas cartas, procurou-as pelos selos, ambas tinham sido escritas em Itália e reflectiam de forma quase violenta, o sentimento de ausência, o desejo avassalador, o tormento da separação.
Leu-as emocionada entre a raiva e a frustração; nunca, nunca aceitaria a ruptura, o desencontro…
Restavam-lhe as cartas, mas lê-las queimava-lhe a alma, abria feridas, sangrava. Não queria ler mais, fechou uma, deixou outra aberta sobre a cómoda; não tinha conseguido chegar ao fim, precisava de a ler mais uma vez. Saiu do quarto, triste, estonteada, já não sabia onde estava, recostou-se na cadeira e fechou os olhos, adormeceu.
Filipe não a viu quando chegou, costumava encontrá-la no jardim, ou na sala a ouvir música.

Procurou-a no quarto, olhou à volta, a carta aberta em cima da cómoda, começou a ler e sentiu que a vida lhe fugia das mãos, que entrava ser querer no passado e intimidade da mulher que amava… e ela, será que o amava também?

Sereia

Vi-te, mergulhavas no rio calmo e tudo se confundia, fresca, leve, eras água, como a água era leve e fresca.
Emanava de ti uma sensação de completa liberdade, com braçadas seguras avançavas, levada um pouco pela corrente e afastavas-te cada vez mais.
Queria apanhar-te, corri como nunca, como corri…Não me viste a mim pobre mortal,  e tu deusa inatingível desapareceste na curva do rio.


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

"L'Important c'est la rose, c'est la rose..."



Amélia passava todos os dias pelo pequeno jardim da biblioteca. Lá estava ele o jardineiro, velhote, quase careca, as mãos calejadas, cuidando das flores.
 As rosas eram o seu orgulho, floresciam despudoradas, poderosas, altivas. Ele olhava-as com desejo, nunca tinha tido uma mulher bonita, a sua, a Joaquina, engordara, estava quase tão careca como ele e desdentada. Com as rosas, todas as infidelidades eram permitidas. Ele até pusera nomes às roseiras, Vitória, Bárbara, Madalena; depois havia o tempo da poda, aí ele sentia o coração partir-se, as lágrimas vinham-lhe aos olhos.
Amélia observava-o; apreciava a persistência, a disciplina com que cuidava aquele recanto florido. Era a única altura do dia que Amélia deixava de pensar na sua matemática, sim porque a matemática era dela, adorava os números, a precisão, o rigor. Sabia, sabia não, fazia de propósito para que as suas aulas fossem difíceis, herméticas, para que os alunos se encolhessem nas cadeiras, tentassem desaparecer, se anulassem, ninguém se atrevia a perguntar fosse o fosse, ninguém ousava ter dúvidas, porque uma dúvida era motivo para uma palavra áspera, uma expressão irónica.
Amélia era alta, magra, quase bonita, o belo cabelo castanho apanhado num sóbrio e discreto rabo-de-cavalo. Zé o jardineiro já reparara que ela abrandava o passo quando via as flores, olhava para as rosas, houve um dia em que chegou mesmo a entrar no jardim e a cheirar as “Bárbaras”. Eram as mais bonitas e também as que picavam mais, uns espinhos afiados que pareciam garras.
Nesse dia quente de Primavera, Amélia entrou outra vez no jardim. Zé aproximou-se e perguntou-lhe:
- A senhora quer uma rosa? Já percebi que gosta delas quase tanto como eu.
-Sim, quero uma rosa, escolha a sua preferida.
José cortou uma rosa amarela, e entregou-lha dizendo:
-Acho que se parece com a senhora.
Amélia esboçou um sorriso e entrou na aula; pousou a rosa em cima da secretária e para espanto de todos disse sorridente:

-Hoje a aula vai ser diferente. Em vez do rigor e das dificuldades das equações, eu queria que vocês escrevessem um conto sobre um jardineiro cansado e já velho mas que é capaz de fazer florescer estas rosas extraordinárias, fruto do seu trabalho, da sua persistência, da sua “paixão”…podem começar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Empacotou a vida


Passou os últimos dias a empacotar, procurou ter alguma ordem, primeiro os livros, depois as fotografias, a seguir a roupa. Empacotou os últimos anos da sua vida. Sonhos, memórias, lágrimas.
“A casa é grande “ diziam, “grande demais agora que está sozinha.” Deixou-se convencer a contra gosto procurando ser racional, mas racional era a última coisa que queria ser. Achava que tinha idade para deixar de lado as racionalidades. Racional rima com emocional. Razão ou emoção ou emoção com razão?
A casa está vazia, não, está cheia dela, a outra para onde a querem levar, essa, está vazia.
Olha à sua volta, vê sombras, vultos, ouve sons, sente o cheiro da madeira a arder na lareira…volta atrás. Senta-se na cadeira de balanço que ficou na varanda. Não, ninguém a vai obrigar a deixar a sua vida e a encontrar a solidão do outro lado.

Depois levanta-se devagar, muito devagar…o tempo é dela, só dela.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

PALAVRAS & IMAGENS




LAMA  - Terreno escorregadio e perigoso
FLOR  -  Renascimento e fragilidade
CONHECER – Conhecimento, sempre mais
PROVISÓRIO  -  Tudo na vida ,. O amor
DAR  -  A única coisa que merece a pena
PROTECÇÃO .-  Braços abertos para nos aconchegarem
ÁGUA  -  Vital o meu elemento preferido
FECHADO -  Não gosto de fechos, de espaços fechados, sufoco
HOJE  -  E ontem, a única coisa que temos a certeza de ter

E o texto nasceu assim...

Disseste que “me amavas e que seria para sempre.” Sorri céptica. “Tudo na vida é provisório, meu amor, tudo. A única coisa que temos a certeza de ter é o que vivemos ontem e talvez o que vivemos hoje.”
Olhaste-me espantado, não esperavas a minha reacção…”Mas tu és minha, eu sou teu…”
“É isso mesmo” respondi-te; “não gosto de espaços fechados, sufoco…A posse é um terreno escorregadio e perigoso. Não me convides para essa viagem onde rapidamente me perderias”.
O silêncio tomou conta de nós. Estamos em campos opostos. Um queria dar, o outro possuir. Se abríssemos os braços para nos aconchegarmos ficaríamos reféns um do outro.
As flores renasciam à nossa volta, vivas e frágeis. Como nós. Apanhei um malmequer e dei-to   “Malmequer, bem me quer, muito, pouco, nada…”



segunda-feira, 28 de abril de 2014

A Verdade e só a verdade!



O silêncio tomou conta de nós. Parámos, ficámos a olhar um para o outro
Tínhamos dito coisas a mais, violentas e duras.
Luís olhava-me com tristeza e os olhos enchiam-se de lágrimas. Comecei a falar, a voz grave, séria, melancólica:
-Excedemos-nos, fomos para além do possível, do perdoável, restam-nos talvez as memórias, lembranças de dias luminosos, onde a esperança entrava triunfante de braços abertos. Acreditámos que só a verdade nos podia conduzir e esquecemos que a verdade é muitas vezes implacável e desperta em nós sentimentos confusos, entre o ódio e a vontade de compreender. Desconhecíamos a nossa incapacidade de perdoar, a nossa intolerância.
Fomos vítimas de um juramento imaturo: “A verdade, e só a verdade e acima de tudo a verdade.”
Como nos enganámos; a verdade matou a nossa relação, a nossa paixão. Agora só nos resta dizer adeus, mas peço-te por favor para não desejares que eu seja feliz. Não vou ser, talvez um dia quando a tua verdade se apagar dentro de mim.
Vai, vai-te embora agora, eu preciso ficar.

O sol põe-se incandescente no horizonte.

HB


terça-feira, 22 de abril de 2014

Quando os teus olhos se abrirem…



Era o espaço que lhe tinham dado. Uma cela estreita e húmida, uma fresta no tecto por onde passava uma réstia de luz.
Sentou-se na beira da cama e deixou que as lágrimas corressem. Só assim conseguia sossegar e lembrar-se que era humana. Naqueles dias que antecederam a sua prisão, esquecera-se de quem era, perdera a noção do tempo, as imagens confundiam-se, misturavam-se, apareciam de forma confusa e depois os interrogatórios sem fim, brutais, a memória que falhava, o desejo de acabar, de morrer.
Depois atiraram-na para aquele buraco. Em cima da cama dura e estreita, em cima do cobertor tão cinzento como as paredes, alguém tinha deixado um livro. Olhou-o, era grande, não percebeu o título…”Um dia os teus olhos abrem-se”.
Folheou-o ao acaso, trezentas e sessenta e cinco páginas, uma letra pequena, difícil de ler. Trezentas e sessenta e cinco páginas, trezentos e sessenta e cinco dias era o que lhe tinham dito que passaria ali. “Coincidência” …pensou.
Começou a ler, a autora era uma mulher, que também estivera presa. Ela ficou presa à escrita, intensa, dramática, comovente. Estava escuro já não conseguia ler…e de repente percebeu; aquele livro não estava ali por acaso, alguém lhe quisera dizer que o livro era um presente.
“Uma página por dia. Tenho direito a uma página por dia. Assim ficarei à espera do momento, da hora mágica em que me posso oferecer a leitura de uma página, só uma mas sempre até ao final.”

Trezentas e sessenta e cinco páginas. Agarrou o livro com força, apertou-o contra o coração “Serás o meu companheiro, o meu confidente, o meu amante, ser-te-hei fiel até ao fim e depois se puder levo-te comigo e ler-te-hei como me apetecer. Um capítulo num dia, uma semana sem te tocar, terei a liberdade para te desperdiçar, para quase te esquecer e depois ler-te com sofreguidão.”