terça-feira, 24 de março de 2015

"Já não dá ...desculpe"


Sabe que não tem muito tempo, mas não se atreve a olhar para o relógio, prefere pensar que o que lhe resta é dela e só dela; do outro lado está ele, separados por uma barreira de vidro, onde por um pequeno orifício podem proferir algumas palavras. “Não chores, tudo vai passar…”
Ela tenta sorrir, dizer-lhe que o amará para sempre, que nada os separará. Mas a voz fica embargada na garganta, e agora soluça convulsivamente. O rosto dele está transtornado pela dor e pela comoção. Consegue ainda esboçar um gesto como se lhe acariciasse os cabelos.
Ouve-se uma sirene, acabou o tempo; ela não consegue levantar-se; ele olha-a, procura um sorriso, uma luz.
Alguém aproxima-se e diz:

“- Já não dá…desculpe.”                         

sexta-feira, 20 de março de 2015

Intolerância, Posse ...Amor?

Tinham-me dito que ele era teimoso que nem um burro, mas que era muito inteligente.
Pensei:  “Não é possível, ou o homem é teimoso e burro, e pronto é uma chatice ter que o aturar, ou o homem é inteligente e vai ser capaz de entender a minha argumentação; claro que tenho que ir bem preparada, parece-me evidente que ele não quer ceder a ninguém, e portanto criou uma barreira à sua volta para não se deixar influenciar.
A tarefa não seria fácil, o assunto era delicado, deixar que a única filha, seguisse a carreira teatral, mas contrariar aquele imenso talento era uma forma de castração e violência, palavras que não poderia usar nunca.
Entrei na sala sem medo.  Olhou-me com altivez e soltou um “sente-se se faz favor. Sei ao que vem, diga-me o que tem a dizer, não tenho tempo a perder.”
“ Não quero que perca tempo, ao  contrário gostaria que ganhasse tempo. De reflexão e de sensibilidade. Ama  a sua filha e tenho a certeza que quer o que pensa ser o melhor para ela…mas o melhor para os nossos filhos não é prendê-los com uma  corrente, como se fossem propriedade nossa e impedi-los de voar.”
“Eu sei o que é melhor para ela.”
“Não, desculpe sabe o que é melhor para si, não para ela.”
“Não quero que ela sofra.”
“Nenhum pai quer que os filhos sofram, mas quer maior sofrimento que matar os sonhos, o talento, impedir o voo livre de alguém que tem o talento  da sua filha. Já pensou como aquilo a que chama amor pode ser sinónimo de posse e crueldade?”
Olhou-me surpreso…“Explique-se um pouco melhor se não se importa".

quinta-feira, 12 de março de 2015

Guerra

Luísa aperta a carta contra o peito. Há dois meses que espera notícias de Miguel.
Sabia que ele não lhe escreveria com frequência. Partira numa missão altamente perigosa e secreta. Telefonemas e emails estavam fora de questão, poderiam constituir pistas.
Luísa senta-se, abre o envelope com cuidado, desdobra a folha de papel branco e olha sôfrega a letra inconfundível de Miguel.

“Meu amor,
Sei que estás impaciente e reconheço como deve ser difícil a minha ausência e o meu silêncio. Conheces as razões. Mas o meu corpo, o meu espírito estão impregnados de ti. Às vezes parece que sinto o teu perfume e que acaricio a tua pele macia. Depois acordo sobressaltado.
Não sei quando voltarei a escrever-te, é tudo muito complicado, mas agarro-me à certeza que nada, nem ninguém nos separará.
Amo-te e podia repetir amo-te, amo-te, amo-te, até à exaustão.”

Luísa respira fundo, limpa as lágrimas que não consegue reter.
“Miguel quando voltas meu amor, minha paixão, minha vida…”
Os meses passam sem notícias, sem cartas, o vazio total.


Um dia a campainha toca, tem a certeza, é o Miguel, corre doida até à porta. Abre-a de rompante. Sim é o Miguel, sentado numa cadeira de rodas.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Fiel e Fugidia ...Felicidade



Se pensarmos, se quisermos ser racionais, sérios, adultos, chegamos à conclusão que temos razões para nos sentirmos felizes.
O mal é querer que a felicidade seja duradoura como se fosse um bem adquirido. A felicidade é feita de momentos, de retalhos, às vezes de migalhas. Somos ambiciosos  e desprezamos os sinais, mesmo pequenos, que ela está ali, ao nosso lado, à nossa espera.
Hoje repito a frase dita por um amigo:  “Le malheur de t’avoir perdu, le bonheur de t’avoir connu”. A felicidade de ter conhecido a felicidade, só nos pode dar a certeza que podemos agarrar na nossa memória o sentimento, a emoção e reencontrá-la.
Às vezes passam tempos em que temos a sensação que ela fugiu e que não a recuperaremos nunca mais e penso, sem poder pensar, sem poder imaginar, sem poder sentir, achando quase um sacrilégio poder pensar, naqueles que há setenta anos viram abrir-se as portas de Auswich, de Dachau, aqueles que sobreviveram, aqueles que um dia voltaram a sorrir…

É preciso tornar a felicidade mais próxima, relembrar, reconstruir. Apagar, sim apagar muita coisa, mas agarrar um sorriso, um raio de luz, uma flor que se abre, um pingo de chuva. Agarrar a vida, e sublinhar todos os dias, os momentos, os segundos em que ela estava ali. Fiel e fugidia.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

*“A felicidade não é um estado perene..."



Querias saber se eu era feliz…perguntaste-me com insistência: “Diz-me foste feliz?”
“Feliz… sim, fui, ainda sou e talvez possa continuar a ser, mas a felicidade não é um estado perene, estável…um dado adquirido; a felicidade é desigual, injusta e fugitiva.”
“Injusta, dizes…”
“Sim tu achas que uns merecem ser felizes e outros não? A felicidade conquista-se?” Perguntas.
“Não, constrói-se, desconstruindo. Precisas de te habituar a esquecer e perdoar, tenta voltar a ser criança e talvez voltar a sorrir. Vês, esboçaste um sorriso, já é um começo “
“Mas quando ele se foi embora sofreste que nem uma condenada.”
…”Sim, condenada a esquecer, a apagar as emoções, os sonhos, as recordações, mas queimei tudo, lembraste? E escrevi-lhe:
“Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros, desapareceste tu”.
“Foi brutal, mas libertei-me, as cinzas são levadas pelo vento, o chão fica limpo outra vez e consegui caminhar à procura da luz e algo a que pudesse voltar a chamar de felicidade. Encontrei, nada foi em vão.”

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Sabemos tão pouco...


As janelas da biblioteca estão abertas de par em par. Os raios de sol iluminam as prateleiras viradas a nascente; o resto permanece ainda na penumbra do amanhecer.
Magnifica colecção de livros que a família adquiriu ao longo dos últimos duzentos anos. Homens notáveis tinham ido ali procurar edições raras e beneficiar da paz e silêncio para reflectir, ler e escrever. Era uma atmosfera quase religiosa, um lugar onde o passado se entranhava no presente e se projectava no futuro. A calma era total, só a brisa leve da Primavera agitava as folhas dos plátanos e o cheiro da madressilva perfumava o ar.
Martim é o neto mais novo e também o mais intelectual; a biblioteca é o seu mundo, passa horas folheando livros, tomando notas. Tinha agora a responsabilidade da reorganização de toda a literatura do século XIX e XX. Quer tornar aquele espaço público, deixar que outros possam encontrar ali a resposta a dúvidas e a inspiração para novos projectos. Naquela manhã sente-se renovado, a Primavera deixa-o estimulado, possuído por uma nova energia.
Entra decidido a encontrar um livro raro de poesia, escrito por um famoso poeta da época e ilustrado pela sua avó. Não a conhecera, mas sabia que era dotada de uma rara sensibilidade e uma enorme independência de espírito. O avô nunca falava dela, Marim achava estranho mas não fazia perguntas.

Os livros de poesia estão nas prateleiras de cima e de difícil acesso; empurra o pequeno escadote e começa a procurar. Sim, é aquele mesmo, na capa o desenho de um pássaro. Abre-o curioso e ansioso como se estivesse a entrar na intimidade de alguém, folheia-o, duas rosas secas estão coladas às primeiras páginas. Começa a ler e não quer acreditar; são poemas de amor intenso, liberto, quase libertino, dedicados a Vitória…sua avó.

Caminho para a luz...considerações



O caminho não me oferece dúvidas, para melhor percorrê-lo procurei-a sempre. Sim, a luz que me desviasse da escuridão mesmo quando era mais fácil…e só o amor à vida me salvou sempre.
Sei que me resta pouco tempo, mas não tenho medo a sombra não conseguirá extinguir a luz.

Caminho para a luz, mesmo quando só me resta a sombra.
Ser o eixo, o pilar, a sustentação daquilo que acredito

A serenidade que vem com o tempo, é o prémio da vida.