quarta-feira, 29 de abril de 2020

O roubo do sonho


Há um mês que está fechado em casa, se é que se pode chamar casa, ao quarto atolado de móveis, livros, um divã usado, a cozinha onde mal se pode mexer e ao canto a que chamam casa de banho.
 Quando podia sair ainda sonhava, com a rapariga da tabacaria de decote provocante e cabelos compridos, com a promoção que o chefe lhe prometera, a viagem a Espanha que combinara fazer com o colega, com a mudança de casa assim que fosse promovido… agora os sonhos estavam no caixote do lixo, os sonhos ocupavam um espaço que ele não tinha mais e provocavam-lhe uma ansiedade que o deixava morto de cansaço.
 Adeus sonhos, talvez até à vista… peço desculpe por ser tão indelicado e de vos misturar com as cascas de batata, as cascas dos ovos, os papeis amarrotados, mas não tenho mais lugar para vocês, nem abrir a janela consigo… Adeus meus companheiros, agora não tenho outra solução…

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Ontem

Foi ontem, mas parece que foi há anos. Ontem, estavas aqui, ontem adormeci nos teus braços, agora só me restam todos os "ontens" para relembrar. O futuro só me trará o passado, só nele permanecerás vivo, hoje os meus braços estão vazios, aperto-os contra mim mas já não te sinto, foi ontem...

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O som de um barco a bater no pontão

As nuvens escureceram o céu, de repente a noite caiu sobre o lago, tornando-o ainda mais triste.
Sempre olhara o lago com desconfiança, aquela calma escura e o seu fundo onde os segredos apodreciam sem que ninguém quisesse descobri-los.
Nascera à beira do lago, na casa grande e isolada de difícil acesso. Adivinhava mistérios,,, porquê aquele isolamento, porquê aquele lugar triste? Nunca lhe disseram, deixou de perguntar. Habituou-se, e agora estava ali quase sozinha, restava-lhe a velha criada e o velho labrador.
O céu anunciava tempestade, adormeceu a custo, o pensamento povoado por sombras e vultos desconhecidos, estranhos... 
De repente um estrondo  que a acorda. Acende a luz, corre a cortina, um barco acabara de atracar no pontão. Alguém caminha pelo cais, ouve bater à porta e una voz forte que lhe diz:
"Abre não tenhas medo, sou o teu pai, não tenhas medo, demorei a chegar mas estou aqui. Prometi que voltava..."   

domingo, 29 de setembro de 2019

Solidão

Fecho a porta atrás de mim, nada me prende, nada me faz recuar. Fui feliz um dia, perdido no tempo, perdido no pó das lembranças. Vou, "sem lenço, sem documento", vou, para longe, bem longe... recomeçar? Não, não quero recomeçar, quero afastar-me de tudo aquilo que foi e que não será nunca mais. Deixo as paredes nuas, as árvores secas, os vidros partidos como a minha vida, partida, sem destino, sem fim, sem memória, não quero ter memória, dói demais... Vou até onde o destino me levar. Pararei talvez parra descansar, talvez seja capaz de fechar os olhos e não ver nada, não quero que nada se infiltre para me lembrar que já tive uma vida, que já amei, que já chorei, que já ri e solucei. Deito tudo fora, já não sou eu que caminho, é a minha sombra, o que resta da minha sombra.

terça-feira, 4 de junho de 2019

"Um balde e uma esfregona mais à frente um livro aberto, maltratado"

Na sequência de uma aula de escrita criativa... os desafios da Margarida!

Hoje a inspiração fugiu entre o balde, a esfregona e um livro maltratado, não me resta senão obedecer ou desobedecer.
Vou obedecer à esfregona e condicionar o meu texto a esse objecto com franjas na ponta normalmente sujas e a pingar? Não, não quero. E depois há o balde - detesto a palavra balde, associo-o a um objecto feio de zinco escuro e água turva, Recuso o balde. Resta o livro maltratado, podia dar origem a um desafio pseudo-filosófico, não estou para aí virada. 
O respeito incondicional pelo livro? Ou o respeito incondicional pelo autor?
Escolho o autor, selecciono o autor, esqueço-me das palavras, lembro o ritmo, a capacidade de captar a emoção, as lágrimas que caem sem nós querermos. O livro que ficou na biblioteca da nossa memória, o livro que corre ainda nas nossas veias, o livro que é nosso e sempre será, o livro que  nos possuiu, que nos manteve fora da nossa realidade, o livro que não queríamos que chegasse ao fim, o livro que nunca será maltratado.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

No domínio do surreal




Resolvi mudar de operadora e concentrar tudo numa só, achei mais fácil e prático sobretudo depois de ter recebido trinta, sim trinta chamadas num dia a tentar propor qualquer coisa que não me interessava nada, para dizer com franqueza não sei se me interessava ou não, simplesmente eu não queria ouvir, detesto decidir este tipo de coisas pelo telefone e só depois de dar gritos e dizer que não era admissível receber trinta chamadas num dia e quinze nas primeiras horas do dia seguinte e que iria apresentar uma reclamação junto da Deco o assunto acalmou.
A decisão estava tomada, primeiro rescindir o contacto com a operadora das trinta chamadas e passar tudo para a outra. Fui atendida por homem educado que entendeu a minha reclamação e à laia de desculpa esfarrapada me diz “Pois é eles no marketing às vezes são um pouco agressivos” mas analisa cuidadosamente o meu contracto e sugere-me que em vez de rescindir com eles porque não rescindir com a outra operadora “afinal a senhora tem connosco televisão, internet, telefone fixo, só falta mesmo o telemóvel”. Era um facto, respondi-lhe: “só mudo se tiver uma possibilidade de não receber uma única chamada dos seus amigos do marketing”, “não há problema é só assinar este documento em que declara que não quer que os seus dados sejam usados para outros fins que não sejam os estritamente operacionais.” Assinei, “souvent  femme varie bien fol est qui s’y fie” bem dizia François 1er,  recebi instruções e explicações, deu-me um pequeno envelope “a senhora tem aqui o seu novo pin, vai receber uma comunicação nossa quando tiver que mudar o pin, é muito fácil…”  Antevi complicações futuras tendo em vista a minha relação tempestuosa com máquinas, aparelhos electrónicos, porcas e parafusos,  mas não me pareceu difícil, afinal só tinha que enfiar no buraquinho microscópico a ponta de um clip e o telefone abria-se e depois proceder à troca do cartão.
Dias depois recebo a mensagem que no dia 5 a partir das 9 da noite devia proceder à mudança. Pontualmente e porque o meu móvel já apresentava sinais de desequilíbrio, respirei fundo, fui buscar o cartão novo, o clip,  abro-o um pouco e tento enfiar a uma das pontas no tal buraquinho, claro como eu antecipara, o clip não entrou, o telefone escorregou, a haste do clip partiu-se…uma voz dentro de mim matraqueava incessantemente “não te deixes vencer, não te deixes vencer”, repeti a operação e resultado igual, não tinha outra solução, dar-me por vencida e telefonar para a operadora, depois de se …carregue no 1, se…carregue no 2, se quiser falar com o operador  carregue no 9, aparece dum planeta onde os homens e mulheres ainda se comunicam por fala,  uma voz masculina, que se apresenta, “sou o João diga-me como posso ajudá-la”, explico o meu drama, pergunta se já experimentei o clip, pede-me para tentar mais uma vez, acedi, mas não resulta, “parece-me que infelizmente não a posso ajudar” “Oh Sr. João não posso ficar sem telefone e a esta hora não vou a nenhuma loja.” “Pois é eu realmente gostava de a ajudar mas não vejo como…espere aí tive uma ideia “ a senhora não tem por acaso brincos para orelhas furadas? “Sr. João não tenho as orelhas furadas…” “Ah que pena…sabe aquelas hastes que têm uma bolinha na ponta?” Acendeu-se uma luz, quem sabe… “Deixe-me ver talvez possa encontrar qualquer coisa, pode esperar um bocadinho”. “Eu espero esteja à vontade, veja lá se encontra…” Encontrei uns brincos que obviamente nunca tinha usado e lá estava a tal da haste com a bolinha. “Sr. João, encontrei, agora diga-me lá como devo fazer” “Sim, sim eu explico, está a ver o buraquinho não está? “Sim, sim estou…”Tem o telefone em cima duma mesa não tem?” “Sim na mesa da sala de jantar.” “Então vamos lá, enfie a haste no buraquinho, está a ver, consegue enfiar?” “Sim consigo, então faça força, carregue na bolinha, está a carregar na bolinha?” “Estou a carregar na bolinha” “Faça força” e de repente “miracolo, miracolo” salta cá para fora uma minúscula espécie de gaveta e o Sr.João todo contente dá-me as instruções finais.
Sr. João merece um prémio, mas só com João não chego lá, mas mesmo assim muito obrigada!

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Realidade e ficção




Escrever sem que a nossa realidade interfira na escrita, diria missão quase impossível… como podemos falar com convicção do que não conhecemos, do que nunca vimos, das emoções que não sentimos, das dores que não tivemos.
Natália Correia diz num poema “Nascitura estava… eu sou dos Açores naquilo que tenho de basalto e flores…mas nós só nascemos quando somos nós que temos as dores…”
Sim, só quando nós temos as dores, sejam elas quais forem, arranhões ligeiros, feridas profundas, queimaduras graves, podemos levá-las para os nossos personagens fictícios e dar-lhes as dores que nós sentimos. Aí a realidade torna-se ficção, ficção credível.
Não gosto da ficção quando ela nos leva para o caminho do alienamento porque nada está lá, nem a verdade, nem a ficção verdadeira.
Tudo o que escrevemos a sério, passa por nós, mesmo que não sejamos sérios, somente verdadeiros na nossa realidade. A ficção pura e simples, o uso das palavras para efeitos sonoros ou oníricos, só em doses reduzidas, as palavras dos outros têm que  provocar um estremecimento, um sorriso, uma lágrima, sem esse eco a ficção é puro divertimento “divertissement”. Então divirto-me doutra maneira!