terça-feira, 22 de abril de 2014

Talasmal a aldeia de granito


As origens de Talasmal perdiam-se na memória do tempo.
As paredes das casas eram graníticas, pesadas, quase ameaçadoras. Os habitantes há muito que tinham partido, a maioria para terras longínquas onde a quimera de uma vida melhor, não apagara a esperança.
Restava a casa grande onde uma mulher ainda nova morava todo o ano.  Restavam também alguns velhos sós e tristes esperando pacientemente o fim
Talasmal, talismã, um nome estranho, árabe, talvez… a mulher nova, alta, magra e porte aristocrático, não parecia incomodar-se com a solidão.
No Inverno embrulhava-se numa capa vermelha, cobrindo-se dos pés à cabeça. Levava os cães a passear e parava no alto monte onde em tempos houvera um miradouro. Olhava o horizonte como  se esperasse algo, alguém, alguma coisa. Os velhos viam-na passar e murmuravam “bom dia Srª. Condessa”.
 No Verão tomava banho no lago, quase nua. Os velhos, eram tão velhos que nem se levantavam para olhar o corpo que já não cobiçavam.
Murmurava-se que esperava alguém, mas ninguém sabia responder quem. Viera para ali quando Talismal ainda tinha gente. A aldeia esvaziara-se e ela ficou, ausentando-se às vezes, sempre pouco tempo.
Um dia viram chegar um carro, os velhos, muito velhos olharam surpreendidos. O carro parou, dele saiu um homem grisalho, rugas profundas; perguntou onde ficava a casa grande…”Siga em frente, sempre em frente”.
A mulher de capa vermelha abriu o portão. Abraçaram-se com sofreguidão, com violência, como se o mundo fosse acabar naquele momento.
“Livre, disse ele, vinte anos passados naquele inferno!”

“Vem, esperei muito tempo, vem, deixa-me conduzir-te.”

terça-feira, 4 de março de 2014

“Não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe”




A mãe repetia-lhe vezes sem conta:
- Ó rapariga tu não percebeste que o homem não presta; lá porque é bonito e toca guitarra, andas toda enfeitiçada. Largaste o João, trabalhador, honesto, para andares com esse vadio do Raul.

A rapariga nem respondia, para quê… a mãe nunca iria perceber. O João era um chato, sempre a falar em trabalho, e o futuro, e a casa que ia  comprar, e as flores que gostava de plantar.
Raquel queria era dançar, rodopiar, e nos braços do Raul a vida era um tango arrebatador e sensual. Todo o seu corpo vibrava, as pernas entrelaçadas, os corpos em uníssono. Uma cegueira perigosa.

O João não existia, só de pensar nele bocejava, a mãe bem podia esquecer, e as palavras dela entravam-lhe por um ouvido e saíam por outro.
Nessa noite havia festa no salão de baile da pequena cidade. Lá estaria Raul e o seu olhar atrevido, as frases sussurradas e lascivas. Raquel antecipava o prazer da dança, as mãos dele apertando-a com força, o corpo que se requebra, que se encosta, que se solta.
Nove meses depois Raquel dá à luz uma rapariga cheia de caracóis pretos como o pai. Raul desaparecera; uns diziam que tinha ido para o Brasil, outros que tinha sido preso.
Durante nove meses Raquel chorou, amadureceu, mas levou a gravidez até ao fim. Aquela vida que se formava dentro dela, dera-lhe forças para continuar. A mãe desolada e triste, não deixou de a apoiar e nesse dia com a filha nos braços, Raquel sorria novamente .
Em cima da mesa do quarto do hospital, um ramo de flores brancas e um bilhete:
“Foste muito corajosa, admiro-te”. João

HB




quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A criança, a mochila e um objecto que fala


Laurinha despenteia-se novamente; a mãe quase perde a paciência. O eterno drama de todas as manhãs. Despe, veste, puxa, grita .Laurinha resiste, cruza os braços, não diz uma palavra, está dura como uma pequena estátua. O casaco é enfiado à força, e o cabelo parece um  ninho de ratos.
A mochila vai pendurada à frente, Laurinha espreita para ver se está tudo o que ela quer. O caderno azul, os lápis de cera, as aguarelas, o pacote de chocolates, e aquele lápis grande com chapéu de palhaço.
Chega a carrinha da escola; a mãe dá-lhe um beijo e suspira de alívio. "Agora já posso falar com ele," pensa Laurinha. Aperta o lápis grande e ouve-se a voz: "É sempre a mesma coisa, não te acho graça nenhuma." "És um estupido, já não gosto de ti."  "Não me rala nada, tu nem sabes escrever." "Sei sim senhora, já escrevo Laura, casa, gato, mãe". "Isso não é escrever, não sabes escrever uma história". "Hoje não falo mais contigo".
Laurinha está furiosa: "Vou-me vingar", pensa, "Vais ver".
Instalada na sala de aula, tira o lápis grande com chapéu de palhaço e o apara lápis, e começa a aparar, roda, roda, roda o lápis.
"Estás-me a magoar, para com essa brincadeira idiota". Ela continua e o lápis grande, fica cada vez mais pequeno e ainda mais pequeno, já não fala.
Laurinha fica surpresa, o lápis palhaço, o seu companheiro, o seu confidente, está transformado num monte de aparas. Os olhos enchem-se de lágrimas, não vai mais poder conversar com ele. Está triste, muito triste, perdeu um amigo.

HB

Para ler preciso de um livro, para sonhar preciso de mim”


“Sonhei esta noite ou melhor tive um pesadelo; não sei onde as pessoas foram inventar que sonhar é bom”, pensou Madalena quando se levantou.
Era sempre assim, o sono tinha a particularidade de lhe trazer de volta todas as suas angústias e ansiedades. Às vezes eram pequenas, grandes coisas, como ontem…”a meio do caminho para o aeroporto, verifica que não tem o passaporte, deixou-o em casa… tem que voltar, tem que voltar, já não tem tempo, ou será que pode, o passaporte, sem ele não pode viajar…” acorda sobressaltada.
Será que há maneiras de acabar com os pesadelos? Porque é que eles a perseguem?
O Afonso diz-lhe muitas vezes que sonha com ela, Madalena não acredita, no fundo até nem quer, não sabe o que o sonho pode trazer, como se pode transformar.
Toma um duche rápido e verifica se está tudo em ordem: sim está lá o bilhete de avião, o passaporte, o envelope com os dólares, a reserva do hotel e o livro para ler enquanto espera. Tem tempo para chegar ao aeroporto. Sem um livro Madalena sente-se inquieta, ansiosa, mas no momento em que se embrenha na leitura, o mundo pára à sua volta.
A viagem é longa, nove horas custam a passar, parecem não ter fim. Quando se cansa de ler, fecha os olhos e sonha acordada. Aí sim é dona dos seus sonhos, faz deles o que quer, pinta-os com as suas cores preferidas.
Afonso espera-a no aeroporto, um sorriso imenso, um abraço terno, um beijo longo, prolongado, quente, e as palavras ”que saudades, tantas, tantas saudades”.

Afinal talvez fossem verdadeiros os sonhos de Afonso!

ORIGENS



Encontrar a terra ou a água que nos corre nas veias, que nos faz perceber melhor quem somos e para onde vamos. Há os que se perdem porque as raízes secaram, outros que renegam a origem, outros ainda que estonteados não sabem qual é o caminho.
A terra, a água, as rochas abruptas e o mar. Misterioso, profundo. Arrastando-nos na corrente ou deixando-nos exaustos na areia.

Entre o mar e a terra, procuro o início, sou alga ou árvore? Granito ou areia? Barco à deriva à procura de um porto.

HB

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Tema: "Na minha cabeça gravitam episódios passados...mas nenhum número"



Não, não aparecem números nos meus sonhos, não me admira, nunca gostei muito deles e afastei-me assim que pude. Curiosamente eles aparecem agora, quando acordada me falam em estatísticas. Interessam-me as estatísticas. Avaliam o presente, comparam com o passado e também prevêem o futuro. E o futuro é uma incógnita, não pequena, mas uma imensa, ameaçadora incógnita.
Não estarei cá para verificar as previsões, a linha do horizonte está mais próxima. Resta-me a certeza do meu passado, nunca tranquilo, porque a tranquilidade era algo que eu não procurava e por isso me enfiei na tempestade achando sempre que o barco aguentava e que depois, durante algum tempo, me pudesse abrigar num porto de águas calmas.
Sim acontece-me ter medo, porque sei que os barcos afundam ou encalham, no gelo, nas areias escondidas e traiçoeiras. Depois tenho a noção da total inutilidade do medo. De que me serve, não me protege, pelo contrário, tira-me forças e energia.
O presente é cheio de novas esperanças, que os meus netos materializam. A eles a vida pertence-lhes, o caminho está aberto, apesar das curvas, das derrapagens, das paragens bruscas.

Gostava de pensar que as forças se equilibram, que é reencontrada uma nova luz, outra estrela, o sol parece estar tão cansado!

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A máquina de fabricar o fim do ano avariou-se...e agora?

... e agora?

- Adia-se, sim mas  como?
Como…ora telefona-se para a fábrica e pergunta-se quando é que eles têm pronto o nosso ano novo, o réveillon.

-Para a semana , dizem eles. Avariou-se a máquina e os operários entraram em greve. Foram para a Madeira ver o fogo de artificio.
- Mas para a semana quando, 2ª, 3ª? Dê-me uma resposta credível!
- Não antes de 6ª feira: olhe, prometemos no sábado; pode começar cedo, os dias estão curtos, lá pelas 6, o que é que lhe parece?
-O que é que quer que eu lhe diga. Nalguma coisa havemos de ser originais.- Mas não sei como resolver o problema das datas.
- Isso não tem qualquer espécie de problema. Atrase os relógios, proíba a venda de agendas, mude os programas de televisão.-
- Sim, parece-me possível…mas e os estrangeiros? Que faço com eles?

- Descontos, descontos nos hotéis, descontos no amor, descontos na paixão. Tudo a preço de saldo e prometa um novo ano em saldo, sem preço fixo, sem nada fixo, a não ser a incerteza! Vai ver que será um sucesso.