sábado, 1 de novembro de 2014

Sereia

Vi-te, mergulhavas no rio calmo e tudo se confundia, fresca, leve, eras água, como a água era leve e fresca.
Emanava de ti uma sensação de completa liberdade, com braçadas seguras avançavas, levada um pouco pela corrente e afastavas-te cada vez mais.
Queria apanhar-te, corri como nunca, como corri…Não me viste a mim pobre mortal,  e tu deusa inatingível desapareceste na curva do rio.


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

"L'Important c'est la rose, c'est la rose..."



Amélia passava todos os dias pelo pequeno jardim da biblioteca. Lá estava ele o jardineiro, velhote, quase careca, as mãos calejadas, cuidando das flores.
 As rosas eram o seu orgulho, floresciam despudoradas, poderosas, altivas. Ele olhava-as com desejo, nunca tinha tido uma mulher bonita, a sua, a Joaquina, engordara, estava quase tão careca como ele e desdentada. Com as rosas, todas as infidelidades eram permitidas. Ele até pusera nomes às roseiras, Vitória, Bárbara, Madalena; depois havia o tempo da poda, aí ele sentia o coração partir-se, as lágrimas vinham-lhe aos olhos.
Amélia observava-o; apreciava a persistência, a disciplina com que cuidava aquele recanto florido. Era a única altura do dia que Amélia deixava de pensar na sua matemática, sim porque a matemática era dela, adorava os números, a precisão, o rigor. Sabia, sabia não, fazia de propósito para que as suas aulas fossem difíceis, herméticas, para que os alunos se encolhessem nas cadeiras, tentassem desaparecer, se anulassem, ninguém se atrevia a perguntar fosse o fosse, ninguém ousava ter dúvidas, porque uma dúvida era motivo para uma palavra áspera, uma expressão irónica.
Amélia era alta, magra, quase bonita, o belo cabelo castanho apanhado num sóbrio e discreto rabo-de-cavalo. Zé o jardineiro já reparara que ela abrandava o passo quando via as flores, olhava para as rosas, houve um dia em que chegou mesmo a entrar no jardim e a cheirar as “Bárbaras”. Eram as mais bonitas e também as que picavam mais, uns espinhos afiados que pareciam garras.
Nesse dia quente de Primavera, Amélia entrou outra vez no jardim. Zé aproximou-se e perguntou-lhe:
- A senhora quer uma rosa? Já percebi que gosta delas quase tanto como eu.
-Sim, quero uma rosa, escolha a sua preferida.
José cortou uma rosa amarela, e entregou-lha dizendo:
-Acho que se parece com a senhora.
Amélia esboçou um sorriso e entrou na aula; pousou a rosa em cima da secretária e para espanto de todos disse sorridente:

-Hoje a aula vai ser diferente. Em vez do rigor e das dificuldades das equações, eu queria que vocês escrevessem um conto sobre um jardineiro cansado e já velho mas que é capaz de fazer florescer estas rosas extraordinárias, fruto do seu trabalho, da sua persistência, da sua “paixão”…podem começar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Empacotou a vida


Passou os últimos dias a empacotar, procurou ter alguma ordem, primeiro os livros, depois as fotografias, a seguir a roupa. Empacotou os últimos anos da sua vida. Sonhos, memórias, lágrimas.
“A casa é grande “ diziam, “grande demais agora que está sozinha.” Deixou-se convencer a contra gosto procurando ser racional, mas racional era a última coisa que queria ser. Achava que tinha idade para deixar de lado as racionalidades. Racional rima com emocional. Razão ou emoção ou emoção com razão?
A casa está vazia, não, está cheia dela, a outra para onde a querem levar, essa, está vazia.
Olha à sua volta, vê sombras, vultos, ouve sons, sente o cheiro da madeira a arder na lareira…volta atrás. Senta-se na cadeira de balanço que ficou na varanda. Não, ninguém a vai obrigar a deixar a sua vida e a encontrar a solidão do outro lado.

Depois levanta-se devagar, muito devagar…o tempo é dela, só dela.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

PALAVRAS & IMAGENS




LAMA  - Terreno escorregadio e perigoso
FLOR  -  Renascimento e fragilidade
CONHECER – Conhecimento, sempre mais
PROVISÓRIO  -  Tudo na vida ,. O amor
DAR  -  A única coisa que merece a pena
PROTECÇÃO .-  Braços abertos para nos aconchegarem
ÁGUA  -  Vital o meu elemento preferido
FECHADO -  Não gosto de fechos, de espaços fechados, sufoco
HOJE  -  E ontem, a única coisa que temos a certeza de ter

E o texto nasceu assim...

Disseste que “me amavas e que seria para sempre.” Sorri céptica. “Tudo na vida é provisório, meu amor, tudo. A única coisa que temos a certeza de ter é o que vivemos ontem e talvez o que vivemos hoje.”
Olhaste-me espantado, não esperavas a minha reacção…”Mas tu és minha, eu sou teu…”
“É isso mesmo” respondi-te; “não gosto de espaços fechados, sufoco…A posse é um terreno escorregadio e perigoso. Não me convides para essa viagem onde rapidamente me perderias”.
O silêncio tomou conta de nós. Estamos em campos opostos. Um queria dar, o outro possuir. Se abríssemos os braços para nos aconchegarmos ficaríamos reféns um do outro.
As flores renasciam à nossa volta, vivas e frágeis. Como nós. Apanhei um malmequer e dei-to   “Malmequer, bem me quer, muito, pouco, nada…”



segunda-feira, 28 de abril de 2014

A Verdade e só a verdade!



O silêncio tomou conta de nós. Parámos, ficámos a olhar um para o outro
Tínhamos dito coisas a mais, violentas e duras.
Luís olhava-me com tristeza e os olhos enchiam-se de lágrimas. Comecei a falar, a voz grave, séria, melancólica:
-Excedemos-nos, fomos para além do possível, do perdoável, restam-nos talvez as memórias, lembranças de dias luminosos, onde a esperança entrava triunfante de braços abertos. Acreditámos que só a verdade nos podia conduzir e esquecemos que a verdade é muitas vezes implacável e desperta em nós sentimentos confusos, entre o ódio e a vontade de compreender. Desconhecíamos a nossa incapacidade de perdoar, a nossa intolerância.
Fomos vítimas de um juramento imaturo: “A verdade, e só a verdade e acima de tudo a verdade.”
Como nos enganámos; a verdade matou a nossa relação, a nossa paixão. Agora só nos resta dizer adeus, mas peço-te por favor para não desejares que eu seja feliz. Não vou ser, talvez um dia quando a tua verdade se apagar dentro de mim.
Vai, vai-te embora agora, eu preciso ficar.

O sol põe-se incandescente no horizonte.

HB


terça-feira, 22 de abril de 2014

Quando os teus olhos se abrirem…



Era o espaço que lhe tinham dado. Uma cela estreita e húmida, uma fresta no tecto por onde passava uma réstia de luz.
Sentou-se na beira da cama e deixou que as lágrimas corressem. Só assim conseguia sossegar e lembrar-se que era humana. Naqueles dias que antecederam a sua prisão, esquecera-se de quem era, perdera a noção do tempo, as imagens confundiam-se, misturavam-se, apareciam de forma confusa e depois os interrogatórios sem fim, brutais, a memória que falhava, o desejo de acabar, de morrer.
Depois atiraram-na para aquele buraco. Em cima da cama dura e estreita, em cima do cobertor tão cinzento como as paredes, alguém tinha deixado um livro. Olhou-o, era grande, não percebeu o título…”Um dia os teus olhos abrem-se”.
Folheou-o ao acaso, trezentas e sessenta e cinco páginas, uma letra pequena, difícil de ler. Trezentas e sessenta e cinco páginas, trezentos e sessenta e cinco dias era o que lhe tinham dito que passaria ali. “Coincidência” …pensou.
Começou a ler, a autora era uma mulher, que também estivera presa. Ela ficou presa à escrita, intensa, dramática, comovente. Estava escuro já não conseguia ler…e de repente percebeu; aquele livro não estava ali por acaso, alguém lhe quisera dizer que o livro era um presente.
“Uma página por dia. Tenho direito a uma página por dia. Assim ficarei à espera do momento, da hora mágica em que me posso oferecer a leitura de uma página, só uma mas sempre até ao final.”

Trezentas e sessenta e cinco páginas. Agarrou o livro com força, apertou-o contra o coração “Serás o meu companheiro, o meu confidente, o meu amante, ser-te-hei fiel até ao fim e depois se puder levo-te comigo e ler-te-hei como me apetecer. Um capítulo num dia, uma semana sem te tocar, terei a liberdade para te desperdiçar, para quase te esquecer e depois ler-te com sofreguidão.”

Talasmal a aldeia de granito


As origens de Talasmal perdiam-se na memória do tempo.
As paredes das casas eram graníticas, pesadas, quase ameaçadoras. Os habitantes há muito que tinham partido, a maioria para terras longínquas onde a quimera de uma vida melhor, não apagara a esperança.
Restava a casa grande onde uma mulher ainda nova morava todo o ano.  Restavam também alguns velhos sós e tristes esperando pacientemente o fim
Talasmal, talismã, um nome estranho, árabe, talvez… a mulher nova, alta, magra e porte aristocrático, não parecia incomodar-se com a solidão.
No Inverno embrulhava-se numa capa vermelha, cobrindo-se dos pés à cabeça. Levava os cães a passear e parava no alto monte onde em tempos houvera um miradouro. Olhava o horizonte como  se esperasse algo, alguém, alguma coisa. Os velhos viam-na passar e murmuravam “bom dia Srª. Condessa”.
 No Verão tomava banho no lago, quase nua. Os velhos, eram tão velhos que nem se levantavam para olhar o corpo que já não cobiçavam.
Murmurava-se que esperava alguém, mas ninguém sabia responder quem. Viera para ali quando Talismal ainda tinha gente. A aldeia esvaziara-se e ela ficou, ausentando-se às vezes, sempre pouco tempo.
Um dia viram chegar um carro, os velhos, muito velhos olharam surpreendidos. O carro parou, dele saiu um homem grisalho, rugas profundas; perguntou onde ficava a casa grande…”Siga em frente, sempre em frente”.
A mulher de capa vermelha abriu o portão. Abraçaram-se com sofreguidão, com violência, como se o mundo fosse acabar naquele momento.
“Livre, disse ele, vinte anos passados naquele inferno!”

“Vem, esperei muito tempo, vem, deixa-me conduzir-te.”